terça-feira, 28 de outubro de 2014

Serviço Social e a reprodução de uma educação tradicional

Eu tinha sérias dúvidas se publicava ou não este texto por insegurança ou por receio de não estar sendo ética. Conversando com alguns colegas fui percebendo que minhas angústias não eram isoladas, portanto creio que seja um direito essa possibilidade de troca. Que fique claro, este texto não é um ataque aos professores e sim uma reflexão sobre nosso modelo de educação e o que é possível construir coletivamente para que avancemos em mudanças.





Serviço Social e a reprodução de uma educação tradicional.

Não parto de conhecimentos científicos, mas de experiências individuais e coletivas. Inclusive por acreditar em outras formas de saber, através dos sentidos e da observação. Estudei em uma escola, que ainda que pseudo-progressista, sua organização se estabelecia para enquadramento, com muitos conhecimentos que não acumularam significado na minha vida. Entrando na universidade me indagava se seria diferente, mas me deparei com grades, disciplinas e avaliações, nos moldes de uma instituição militar. Pensei então se no serviço social esta realidade poderia ser diferente, o que seria possível desconstruir dentro destas estruturas.
Acabei me frustrando também. Com mecanismos coercitivos e a sala de aula como espaço pouco democrático e ao decorrer dos períodos passou a se apresentar como um espaço de silêncio. O conteúdo das disciplinas me foi tão facilmente esquecido quanto o conteúdo da escola, eu parecia ter uma grande perda de tempo em certas aulas, de avalanches teóricas, que tentávamos sinalizar que não conseguiríamos absorver. Depois de muitas vezes sendo mandada estudar após indagações, com o cerceamento das possibilidades de troca, passei a me limitar a reproduzir o conteúdo (e nessas horas eu me saia muito bem) para passar na prova, já que fazem parecer ser o que realmente importa .
Continuam assim a repetição de velhas práticas. Enquanto nos são dados métodos burros de avaliação, nos forçam a encontrar respostas inteligentes (e muitas vezes seculares) como a cola, como recortar e colar um texto sem ao menos ter lido. Para nossas respostas inteligentes, é escolhida pelos professores a via da punição para continuarem a reproduzir métodos falidos.  Creio que um bom começo seria perguntar aos alunos de "porque eles colam?". Optam por mecanismos como “fichamentos” à perguntar se os alunos se interessaram pela leitura e quando perguntam, ainda que a resposta seja que o texto é desinteressante, continuam a passá-lo período após período. Não nos indagam como nos sentimos frente a termos que nos expor na apresentação dos trabalhos. Pelo contrário cada vez mais essa exposição vira um espaço de medo, porque é a todo tempo mediado pela aprovação, pelo teste, por atestado público de capacidade ou de falta dela, é mediada pela autoridade. Não nos fazem perguntas.  Não escutam os estudantes, porque não nos enxergam.
Me sinto um ser imbecilizado a partir do momento que o professor sabe e decide o que é melhor pra mim e sequer partem da rica possibilidade de troca sobre a realidade dos alunos, sobre nosso acúmulo (em uma perspectiva de história, cultura, território).  A única vez que fomos indagamos sobre o que gostaríamos de aprender (sobre a ementa) foi no sexto período com uma professora que não é do serviço social, a postura nos deixou sem reação. As grades são uma realidade concreta do curso.
Claro que todo esse processo de reflexão não foi simples, o meu CR tem um valor ridículo, mas a única coisa que é mais ridícula do que ele, é ele servir para qualquer processo de avaliação,  ele separar bons e maus alunos, como se fosse possível existir este tipo de classificação. Não é fácil pensar todo dia o meu nível de mediocridade como futura profissional, por muitas vezes negar a sala de aula, pra ser sujeito da construção da minha formação, por discursos que não pensam o porque de eu buscar estes espaços, mas punem/pregam de forma discursiva, que os estudantes que não estiverem naquele espaço, tem grandes chances de não ter embasamento teórico e se tornarem um profissionais incompetentes. Este verdadeiro monopólio do aprendizado que determina quais são os lugares que você pode ter acúmulo e que muitas vezes deslegitimam, por exemplo, os espaços do M.E deslegitimam o nossos espaços de auto-organização, de nossa autonomia. Seja lá qual for o motivo me soa uma forma muito autoritária e pouco reflexiva a presença do CORPO em sala de aula. E eu me pergunto se temos ou não uma educação baseada na punição das múltiplas formas de como ela expressa ?
Nós não ficamos dependentes ou somos tutelados quando somos questionados por nossas ações, mas quando não somos protagonistas das nossas reflexões. Não há como trabalhar autonomia e liberdade com usuário, se não trabalhamos estas questões na nossa formação. Haverá continuidade na formação de profissionais que carregarão os valores mais conservadores, ainda que com nossa formação marxista, se não tivermos espaços de discussões onde estes alunos possam falar, para compreendermos a partir de que construções eles partem.
Se não tivermos espaços de troca para repensarmos nossos valores, nós os carregaremos em silêncio para nossa prática profissional. Isto só é possível a partir da compreensão de que a sala de aula deve ser um espaço democrático e isso só acontece na prática se pensarmos coletivamente em mecanismos democráticos para estabelecermos nossas relações, se discutirmos as relações de poder . Nos demandam rebeldia frente a esta sociedade, mas calam nossa rebeldia dentro da sala de aula. Há uma formação de aprofundamento de discurso, mas não há aprofundamento de sensibilidade. Muitos professores têm discurso afiado, mas na prática, eles nos mostram que são completamente limitados de se reconhecerem como profissionais/humanos com práticas profundamente insensíveis. 
É exaustivo dialogar com um professor para explicar  minhas faltas e ser oprimida por isso e que fique claro isso não significa vitimização, e sim busca por autonomia, por direito de escolha, porque parece que a única via de educar hoje é nos dizendo o que fazer e como fazer.
E explicar ainda que minha falta se dá em decorrência de que o outro espaço que eu estava participando seja teatro, cinema, discussões, reuniões contemplações me trazem mais acumulo intelectual e pessoal de que a aula dele ou que simplesmente aquele era um espaço importante para mim e infelizmente eu tive que me ausentar.
Parece engraçado falar dos desafios do assistente social como a criatividade, a comunicação, a construção de reflexão com o usuário. Se eu sequer construo uma reflexão com meus professores, como posso construir com o usuário? Se eu não me sinto sujeito dentro de sala de aula, como vou olhar o usuário como sujeito? A minha relação com ele é de comunicação via discurso? E a comunicação com o corpo, com a arte, com a escuta? Para a possibilidade de ser criativo é preciso antes de tudo a possibilidade de um espaço de criação. Nós não sabemos o que significa criatividade, pois estamos presos a amarras mecanicistas e lineares, sem expor nossos saberes e experiências. Vamos partir dos vícios das respostas?  As chances de reproduzir o modelo da nossa formação na nossa profissão me parecem grandes. 
Na direção de uma aula, nós perdemos o nosso controle sobre o processo de nosso próprio aprendizado. As aulas se tornam uma grande ironia, estudar processo de trabalho, pensar o marxismo vira uma grande piada em construções nada dialéticas. Se o curso de serviço social reproduz os moldes da instituição escola tradicional, ele também não contribui com a nossa emancipação. Eu espero um dia poder viver em uma sociedade sem manicômios educacionais.


Maria Carolina Abreu.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Qual é o seu nome?

Quando eu era pequena assisti o filme Estamira e soube tempos depois que as pessoas o achavam muito pesado, eu achava esquisito eles acharem aquilo. Pois bem, eu fui crescendo e levei algumas recordações, de falas, de cenas, tudo me marcou de uma forma estranha. Lembro que ao fim do filme eu falei pra mim mãe: -Mãe queria comer o macarrão da Estamira. Ela me causava encantamento, e eu tinha muita vontade de conhecê-la. Até que soube de sua morte, que me tocou muito. Mas ESTA MIRA tudo vê, está em todos os lugares e me presenteou com uma outra sábia mulher. A história narrada abaixo é baseada em fatos reais, mas não se esqueçam: É apenas uma obra literária. Evitem ler lúcidos, segundo a própria, a lucidez não deixa ver.






Qual é o seu nome?


      Não são para muitos o estranhamento com as gaiolas empilhadas feitas de pedra. Eu faço parte do outro grupo junto com uma senhora suja que vive no meu andar. Na porta de sua gaiola, existe um batalhão, que anda meio desorientado sem saber o que procuram, mas que mesmo na invisibilidade do nascer do sol e do descer da lua, habitam diariamente aquele lugar. A estratégia do batalhão é genial, pois causa permanente asco no resto daquela gente que não sofre de estranhamento, garantindo assim, território livre dentro da gaiola. 

   De antenas em pé, as vezes alguns se aventuram no vazio branco do corredor, ousam tentar tirar o juízo dos sensatos que habitam as gaiolas vizinhas. Buscam frestas, em tentativa fracassada de encontrar luz ou comida. Da minha gaiola escuto o barulho dos spray's das vizinhas, me causam aflição, me fazem encolher e querer tapar os ouvidos. A violência daquele ruído somado ao seu tempo de duração indicam que definitivamente eles não querem matar apenas insetos.
   Essa gente que ocupa este lugar se veem, se esbarram, mas não se enxergam. Deve ser mesmo culpa da lucidez que cega os olhos saudáveis. Nesta invisibilidade, os sentidos destes, parecem ser rígidos e inertes de expressão, inclusive a fala. A troca de vozes só acontecem pelas amarras morais da civilização. Dentro desta exceção de troca, resolvem se reunir, mas suas presenças para fora de suas gaiolas parecem se camuflar com o aspecto frio e vazio do corredor. 
   O ponto central do burburim era solicitar a dedetização da gaiola vazia das tardes com gente. A gaiola de marcas pretas na porta e pó preto pelo chão. A gaiola sem tapete. Solicitação da anulação da gaiola que é diferente, que ofusca todas as outras, ainda que seja a mais oprimida, é como se a defesa da gaiola fosse sintoma de agressão. Um pouco das narrativas:

-Essa velha só chega de noite pra ninguém ver.
-Mas e os filhos?
-Isso daí tem família? 
-Eu não aguento mais
-O porteiro diz que tem lixo até o teto
-Temos que ir todos...

   Fechei a porta e fui sofrer como um pássaro sem canto. Não ousei a fala, palavras tem muito poder (e aquelas pessoas ou não sabem disso ou sabem muito sobre) preferi responder com o silêncio. Eu não queria que ela se fosse, mas com certeza não ficaria ali sem sua coleção de objetos que a protegem, sem seu batalhão, sem sua sujeira para ter anti-corpos suficientes e não adoecer de sujeira humana.         Murchamos as duas, sua presença me atormentava e quando vi, estava completamente envolvida com a senhora, mesmo que eu estivesse de forma oculta. Sem ter sido preciso uma palavra trocada, sem precisar vê-la com frequência, me envolvi angustiadamente com a simples existência de um ser humano que eu sequer conhecia, mas que precisava por perto para me proteger também. 
   Eu queria a elevação através da sujeira assim como a dela e ela foi fundamental pra essa descoberta. Por exemplo, levei muito tempo para admitir para mim mesmo que a minha nudez não era suja, não era feia, e não falo sobre essa admissão no sentido moral, porque no campo do discurso, a nudez me era sempre admissível, assim como ela é admissível para o mundo quando padronizada...digo no sentido estético, de encontrar beleza nas diferenças que meu corpo apresentava para mim, de engolir o nojo do mundo diante das minhas imperfeições que nascem conosco como se fossem pra gente sofrer. 
   Toda essa ânsia que o mundo vomita sobre nós duas se tornou fonte de libertação. A sua presença, ainda que de andar tímido e arrastado pelos cantos me soava uma grande afirmação que resgatava minha história, minha identidade. Ela me mostrou o lixo, eu a respondi com nudez.
  De fato não deu outra, ela teve que esvaziar o apartamento, o corredor que até então era um vácuo se encheu de fantasia e sofrimento. De sua gaiola eram despejados sacos e sacos de histórias, de armaduras, de guardas chuvas. Ao fim destas pilhas de sacolas na direção de sua gaiola para a minha, havia e escada do prédio, onde ela ficava sentada, que coincidia de ficar ao lado de minha porta. Eu ficava inerte ao encontrá-la, me dava frio na barriga, coração acelerado, era uma ameaça (querida) pra mim.
   Seus olhos cabisbaixos de trapo me penetravam a alma. Olhos que parecem sentir a dor da vida, que carrega consigo a solidão de nascença. Seus olhos distantes e misteriosos, me fazem ter dúvidas se são tristes ou se estão tristes por invadirem, aprisionarem sua gaiola, que até então era a mais livre. Cada frecha de ar da gaiola, foi vedada. Sua melancolia era tanta, que eu me indagava sua relação com essa clareza agressiva da sociedade e me pergunta a forma como vivia lhe causava mais dor ou imunidade.
  O cheiro que fugia destes sacos me embrulhava o estômago. O cheiro me perseguia mesmo quando eu estava longe de casa. Estava impregnado no meu nariz, no meu corpo, no meu organismo, estava entranhado em mim e não havia banho que o carregasse, além disso, junto com ele me vinham os olhos de trapos. Para os outros o odor era ainda mais insuportável, pois era cheiro de uma realidade que não cabia ali, de um perfume não-artificial, não-máscara.                  Absurdamente aquele fedor passou a fazer parte de mim.
Eu a cumprimentava todas as vezes que a via e era a única que fazia do meu andar, eu perguntava se estava tudo bem e ela sempre respondia que mais ou menos, de cabeça baixa, com seu belo vestido de pano que parecia com seus olhos. Um dia eu falei que se precisasse de algo ela poderia pedir, era só tocar ao lado, ela levantou a cabeça e agradeceu.
  Esse foi um grande passo pra mim, que sempre ficava paralisada em seu encontro, conseguia entrar no caminho sem rumo de suas expressões, quando falava com ela, mas nos comunicávamos também com o silêncio de nossas posturas, com corpos abatidamente curvados. Eu fantasiava nossos encontros e imaginava um monte de versões para sua história, eu queria escutá-la, conhecê-la, queria que ela dividisse um pouco de seus ex-passos comigo. Sua coragem me enchia de novas questões e um sentimento de impotência por saber do meu medo de expor a loucura que já habita a minha cabeça. Eu mesma tranco e prendo o que há dentro da gaiola que carrego em mim.
  O tempo foi passando e os dias foram ficando mais doentes, porque ela partiria junto com seu batalhão pra outro luga. Em breve eu teria que viajar e ficava a cada dia mais ansiosa de saber se ela continuaria, ou se na minha volta não teria mais a minha proteção. No dia da viagem, por um motivo que não me recordo, estava alegre, coloquei a mochila nas costas, saí de casa, e lá estava ela sentada. O elevador estava em um andar próximo, eu chamei. Olhei pra ela, com um sorriso de olhos, dei boa tarde, disse até logo e entrei no elevador, antes que a porta se fechasse ela me olhou e perguntou: Qual é o seu nome? Respondi e devolvi a pergunta, ao finzinho de seu nome, a porta do elevador fechou. Eu viajei, ela foi embora e não voltou.
   Eu comecei a escrever esta história pouco depois de nos conhecermos e aos poucos eu ia preenchendo espaços do texto e de quem o escreve. Mas Quando ela se foi, levou uma parte de mim, que me impossibilitava continuar a escrever. A falta que ela trazia parecia me desumanizar, a mim e a todo este andar que perdera o gosto. Até hoje fico imaginado, sorridente, seu lixo tomando todo o prédio e limpando toda a podridão das gaiolas empilhadas, enquanto no nosso canto, a gente observa o vírus da paranoia se espalhar.
   Ontem eu regressei da universidade e no outro bloco vi uma senhora que me lembrava ela e fiquei feliz. Em seguida chegou uma moça e comentou com o porteiro de forma maledicente: -Ela só chega de noite pra ninguém ver né? Ele ri e confirma. Ela continua: Dia desses eu a vi subindo aqui. Ele novamente em um riso cômico-sínico responde: É ela tá voltando a encher aqui também. A sua existência perto de mim destravou meus dedos para essa escrita, os ombros curvados de desânimo e apenas por existir provoca a gaiola de minha cabeça: Quando lutará por liberdade?
   Ah, esqueci de um detalhe importante, pouco tempo depois dela ir embora, a fresta de minha porta apareceu lacrada, tá até hoje, não ouso tocar, apenas fico muito, mas muito feliz. 

Continua...?

Maria Carolina Abreu, Atemporal.

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

O vestido

Dia desses deitada na minha cama, com forças que em brincadeira maledicente se escondem, olhava pela janela do quarto o céu... como as nuvens não se mexiam, tampouco a casa, indaguei se o mundo havia parado.
A verdade é que eu transpunha minha inércia para o mundo e o meu vazio para o céu. A comunicação do vazio triste e intrinsecamente egoísta, faz com que a compreensão alheia, com razão, passe bem longe, em posição de indiferença.
Parece ser preciso que nos prendamos em cordas invisíveis para que não haja, o que nessa sociedade pseudo-lúcida chamariam de surto e essas amarras levam tempo e ocupam corpo e cabeça.  
Acho que este é um pouco do motivo que abandonei o blog. Em breve o transformo em um diário piegas sentimental para estar mais presente.
Agradeço ao brilho nos olhos dos amigos de meu companheiro que tive o prazer de encontrar. Não tinham brilho nos olhos quando falavam da escrita, mas fazer a associação entre as duas coisas, me deu muita vida.
Me permito não fazer muitas coisas e fico pensando que se a escrita fosse uma obrigação provavelmente eu largaria, mas o abandono da escrita é uma forma de agressão que eu não me permito. 
Espero que vocês estejam com saudade, eu estava com saudade de mim!
Boas ventanias na leitura deste próximo conto...




O Vestido


    Finalmente tomei ânimo para sair de casa, não em copo de água com pílulas, apenas com o medo do corpo de enrijecer. Saio em busca de uma inspiração que me dá riso melancólico, já que não dá em árvore ou no vento. Aliás, ainda que haja um pôr do sol alaranjado e um leve aquecer nos lugares livres de sombra, há um ventania terrível. Eu a odeio já que sua única função é o desconcerto. Vou até o cais, o local costuma concentrar algumas pessoas em fins de tarde e para mim serve as vezes para a escuta de uma boa história, quando os ouvidos com cera ou imagens a serem observadas, quando os olhos fechados não são importantes. Queria eu, que minha criatividade, corresse como esse maldito vento de hoje.
    Hoje é um daqueles dias que a linha branca do paralelepípedo, no qual eu ando cambaleando embriagada de realidade, parece desequilibrar o limite entre a sinceridade e a auto destruição. Saio sabendo que passarei o dia em convivência com todos aqueles sintomas de histeria coletiva humana, como: o amor ao trabalho, a monogamia ou a lua, com tudo aquilo que não é posto em dúvida. Encontrar pessoas que falam o que querem e escutam o que querem falar. Ou até mesmo aqueles que ousam a negação de suas verdades, mas que carregam uma contradição monótona em suas falas incisivas, sem cogitar que essa não existência também é uma forma de verdade. Analogamente as acabam por travar diálogos como com seres inanimados, que consomem minha alma e ultimamente me fazem perder um pouco de vida. Sinto uma solidão profunda, que não se resume a estar só e sim de não querer estar na companhia de outras pessoas.
    No cais, de forma rebobinada, o barco parece trazer de volta a seu ventre o sol que pariu de manhãzinha, isso me traz um pouco de vida, e a coincidência de só ter mulheres na praça daquela pequenina cidade, dá aquele vento provocativamente irritante uma espécie de sintonia em encontro a um rebuliço revolucionário. E para mim, que narro as cenas destas mulheres, um fardo desafio, já que minha relação com as pessoas vem de forma montanhosa degradando-se. Observo, com os sentidos do corpo e as fantasias da imaginação, três imagens:
    Suas unhas ruídas ao sabugo fazem com que suas mãos percam as forças até para segura sua cabeça que aponta para baixo. A mulher tem o pescoço turvo com a cabeça pendurada entre as mãos em misto de vergonha e dúvida. Tem vivido de pequenos surtos. Suas curvas explicitam sua jovialidade. Ela está em um dilema, pela primeira vez se sente profundamente feliz com alguém, ainda que esse alguém não firme compromisso futurístico com ela, que a traia, que não lhe traga nenhuma certeza do amanhã. A sua cabeça não consegue raciocinar mais, toda a ausência presente dele lhe causa profunda insegurança e uma espécie de sensação de depressão cotidiana. Volta e meia ele não vai dormir em casa, ora porque se perde por pequenos encantos de outras mulheres, ora porque cai nas tentações da música e das drogas leves. Leve também ele vai se achegando pra perto dela e sabendo suas convicções religiosas goza: um dia, se Deus quiser, você vem para o mundo das drogas também. A jovem sente muita raiva, mas com um arrepio de graça pelo corpo, já tá acostumada com os sentimentos contraditórios que ele lhe causa. O sexo é a cada sexo, o melhor de sua vida, e ela dividida entre lagrimas e gemidos, sabe que só o é, apenas porque deriva das explicações das traições, que multiplicam as formas de carinho. Ela o enxerga como as amoras de seu quintal. Com sua ansiedade do amadurecer das amoras, que no outro dia aparecem pretas, ela as cole, mesmo sabendo que ainda continuam amargas. Ele definitivamente não é "homem pro resto da vida", se é que isso de fato existe, sem que seja por obrigação, mas não importa. Estar sem ele é engolir a voz, com ele, são gritos perdidos no vazio. Ela então resolve engolir o choro e o sofrimento de vez da sua vida. Olha no relógio e o ponteiro marca seis da tarde, não pode se atrasar, vai encontrá-lo e contar sua decisão. Ele já a esperava no portão com sorriso cínico e com cheiro de um perfume feminino qualquer. Ele pega o violão encostado no muro e antes que a voz dela ecoe, ele canta e toca a poesia que lhe fez de presente.
    Onde já se viu uma mãe sair com seu filho em plena ventania? Este é o cometário geral da cidadezinha. Ela sente os cochichos e caras de reprovação pelo seu desleixo. A viseira das tradições lhe traz angústia e uma impotência que se parece como quando estende lençol de elástico no varal. Em meio a tensão que comprime seu corpo no banco da praça, ela precisa disfarçar o enorme prazer que sente pelo chupar do seu peito pelo seu próprio filho. Seu inquietamento é mais que visível e forma nas redondezas uma espécie de torcida organizada à um surto clássico, para que o mais rápido possível essa insensatez fosse isolada bem longe. A moça resolve levantar-se com o filho no colo, e tem um andar meio desorientado por seus pés aéreos. Não importa, já que o que nos derruba é a vista distraída. Vai em direção ao muro do cais, onde as ondas se chocam a ele violentamente. No curto caminho sente uma dor que se estende até a ponta dos dedos pelos julgamentos alheios que tiram-lhe a força, força essa, necessária para que seu filho propositalmente não escorregue por suas mãos. Seus olhos castanhos tem um lacrimejo que não se sabe bem se é culpa do vento ou da tristeza. Encosta a barriga no muro, ergue os braços e levanta seu filho em direção as ondas, que neste momento estavam mais mansas. Há uma tensão, junto a uma inércia proposital geral. Mãe e filho se olham profundamente, e o filho ao ser suspenso pela incerta tremida mãos da mãe, olha a fundo seus olhos perdidos e do alto, imóvel, solta uma deliciosa gargalhada, que misturada a aquele vento, parece um grande deboche da vida.
    A senhora sorri de lado, como se houvesse um espelho imaginário em sua frente, onde fosse possível o controlar do local de cada ruga no movimento de cada traço de seu rosto, o que não era nenhum desafio para ela que passou cinquenta anos casada. Seus olhos miram sua casa, mas parecem atravessá-la, estão imóveis, mas desatentos. Ela veste um vestido floral com um decote descosturado, ainda por terminar, nos lábios finos veste um batom de um rosado antigo. É sem dúvidas, a imagem mais bonita daquele lugar, que parece entrar em fusão com a luz mais bonita do dia que paira sobre seu corpo senil, mas forte, uma espécie de soberania serena. O vento joga seus cabelos não muito longos a chibatadas em seu rosto, mas ela não se mexe, é como se estivesse em uma profunda contemplação. Ainda que com consciência de seu deslumbre sem se importar com a vaidade. Seus olhos correm para o canto e acompanham a ambulância que estaciona em frente à sua casa, os enfermeiros descem do veículo, entram na residência e saem minutos depois com um homem estendido na maca...é explicita a busca dos profissionais por sua mulher para que pudesse acompanhá-lo, sabe como é, cidade pequena todos se conhecem, consomem a vida um dos outros. Mas não havia nem sinal dela, apenas do outro lado da rua, uma divina senhora, que continha agora o ultimo raio de sol iluminando sua boca, dando uma coloração mais viva ao tom de seu batom envelhecido, mas nunca antes vista por aquelas bandas. Ela fica ali mais alguns minutos, espera que o carro vá, em seguida cruza a rua, entra na casa e fica nua. Seu vestido que nunca pode usar ficara lindo com os botões pregados. O travesseiro marcado por suas unhas continua no mesmo lugar.
    Meu corpo vazio foi preenchido por aquele vento ousado, que sem pedir licença avançou pelos meus poros, trazendo junto a ele, todas aquelas histórias que se entranhavam em mim. Me levanto pra voltar pra casa em direção oposta a ele, que briga com meu corpo, mas carrega meus pensamentos pra um espaço desconhecido, escancarando pra mim, agora sem grandes resistências, que a natureza, responsável por nossa existência, traz a grandeza do absurdo dentro de nossa insignificância.


Maria Carolina Abreu.