sábado, 6 de setembro de 2014

Trauma, pão doce e passarinho

Este conto é recente e inédito. Não foi nem publicado, nem possivelmente avaliado em concursos. Creio que o blog esteja sendo um mecanismo democrático tanto comigo quanto com os leitores, se dependesse de uma banca estaria no mínimo triste. A leitura de vocês me enche de inspiração.
Este escrito me traz algumas "associações" sem um traçado lógico. Inicialmente o conto me lembrou a pintura abaixo do Chagall, aliás de forma geral, suas pinturas sempre me vêem a cabeça. O circo, as pessoas voando, o violinista no telhado, de alguma forma me trazem uma confortante identificação. Talvez se tivesse que escrever algo sobre essa imagem, seria este conto. 
No mais me percorrem as ideias o Nelson e o Bergman com os mais brilhantes textos sobre os conflitos de casais, que excedem a "normatividade" e os clichês globais, indo a fundo nas inaparentes contradições das relações humanas.
Boa viagem...





Trauma, pão doce e passarinho

        Ela insistia em adjetivá-lo de imaturo. Aos vinte e oito era formada em enfermagem, enquanto ele com quatro a menos, cursava matemática. Moço pacato e observador desejava apenas formar uma família, e isso se dava talvez pelo trauma com sua própria, ou apenas pelas características de sua personalidade. Interessado em psicologia, acreditava ter trabalhado ao longo de sua vida sua frustração familiar, a fim de tratar suas fraquezas, sem fugir a transparência. Mas ainda sim, volta e meia, dava longos suspiros, meio perdido, meio confuso, se todas as buscas por argumentações, não eram simplesmente uma forma de se expor, para se confortar a legitimar seu destino que já havia traçado.
  Já a moça, se opunha bastante ao rapaz. Talvez por seu jeito inconstante ou apenas pelo saboreio da oposição. Entediava-se rápido, tinha fome de mundo e rejeitava o roteiro da vida. Sua rebeldia era posta em dúvida por uma série de dependências emocionais. Vivia meio dolorida, com ombros rígidos e pescoço duro por carregar suas angústias.
  Ele tinha muito de menino, enxergava o mundo com os questionamentos de  quando se é criança, e a moral permeava sua  vida de forma avessada. Por isso, volta e meia, recebia duras críticas sobre sua displicência para com os outros. Não era muito de cobranças, nem de excessos de carinhos, talvez por ausência de afeto durante a infância, talvez por não encontrar sentido em toques afogados em romantismo. Ainda sim contraditoriamente, demandava atenção. Quando estavam na casa dela, o que com o passar do tempo foi se tornando uma rotina, nunca a deixava longe ou que dormisse durante as tardes, ainda que ficasse a maior parte do tempo longe e introspectivo, o ato indiferente da inconsciência de olhos fechados, o fazia se sentir só.
  Ela gostava desta atmosfera de mistério e observação, mas se sufocava. Quanto mais sucinta atitude de domínio, mais ar lhe faltava. Sentava-se ao lado dele e abria um livro para refrescar a mente. Tinham longos momentos de silêncio. Silencio de decifre, não de embaraço. Olhavam-se nos olhos, e diferente do que se vê, o silêncio era preenchimento do vazio. 
Durante o sexo, ele era bastante atencioso, excesso de sensibilidade ou talvez de desinteresse. Não importava para ele. O relaxamento muscular conseguia sozinho com as mãos, queria sempre garantir o poder de seu próprio prazer. Ela, desde nova se lambuzava com o sexo, não sabia se estava ligado ao fetiche ou ao prazer. Com seus acompanhantes, incitava-os a chegar ao auge de sua potencia, em silêncio, tinha sempre uma sensação de morte, um estranho prazer na subalternidade que não admitia em seu cotidiano. 
  Talvez se encontrassem nos devaneios dos hábitos... Ela, pequenina amava pão doce e sempre o comia puro, um dia resolveu experimentar com manteiga e surpreendentemente teve um prazer indescritível. Continuou a comer pão doce puro. Não queria perder a primeira sensação. Raramente quando o fazia, sentindo a mistura do sal com o doce, reencontrava o sabor da primeira vez. Pensava se todo prazer passa pela privação ou se o encontramos na banalidade. O sexo dos dois era banal, havia prazer, mas nunca teve gosto de descoberta.
  Namoravam a um ano, muito rápido, muito intenso, traçando um caminhando de encontro direto ao fracasso, pelo menos era desta forma que ele pensava. Dizia que a rotina cansa e que as diferenças se intensificam, se quisessem uma relação duradoura deveriam prolongar o tempo em distancia. Ela pensava completamente ao contrário, não fazia sentido um Fordismo do amor, tinha medo que o sentimento não mais existisse nesta distante projeção pautada em riscos. Talvez por orgulho em afirmar a sabedoria de sua teoria ou apenas por submissão a fim de suprir seu suposto trauma entrou em acordo com sua proposta. Em breve morariam em sua casa.
  Eis que aparece uma discussão central. As formalidades da moral, com a qual os dois viviam em constantes e distintos conflitos. Como doía para ambos, se imaginarem entrando naquela construção com cruz ao alto, divindade e batina. Para ele o casamento só era importante enquanto autoafirmação, dispensava as formalidades. Gostava da estética, que sempre admirou, devido a sua grande percepção observativa, mas a tensão de olhares a sua volta, juramento e  aprovação, deixavam-no a soluços inverbalizáveis. 
  Preocupava-se muito com sua imagem ou em estratégia para apagá-la ao máximo. Em situações simples de exposição, tinha crises de pânico. Certa vez, entrou no metro e quase caiu, tentava se equilibrar evitando encostar nas pessoas que ficavam apaticamente imóveis, como as baratas sonsas, capazes de passar um dia inteiro no mesmo lugar, como se estivessem mortas. Após o frear do trem, seu balanço inesperado acarretou olhares ferozes e maldosos, que pareciam rir com as rugas do canto do olho. Após o ocorrido se esquivou dos corpos até chegar a porta, desceria na próxima estação, quando se deu conta que estava do lado errado. Não suportaria atravessar meio metro de olhares, desceu uma estação anterior, e durante seu trajeto que duraria cerca de quarenta minutos, lagrimas silenciosas correram seus olhos imperceptíveis a qualquer olhar. 
  Já a moça, apesar de concordar com o namorado sobre o belo caráter estético, afinal, meninas crescem com seu imaginário de fantasias preparadas a espera do grande dia e ela não era uma exceção a regra. Estava certa, que jamais repetiria agressões deste tipo a si mesma. Entrar de branco na Igreja lhe parecia uma ridicularização de si e de um ímem já rompido. Em pecado, depois de adulta zombava da Maria ou dos que exaltavam seu "manto". Por sua formação, ou por questões obvias sabia da impossibilidade da virgindade da Santa. 
  Vinda de família católica o mundo de castidade lhe deixava tonta, era incompreensível. Quando criança, ao chão, no canto de seu quarto, experimentou se tocar, quando os olhos da mãe cruzaram o movimento da mão da menina, ela recebeu uma surra memorável. Em efeito inverso, a menina só tinha mais vontade de se conhecer e de se mostrar, o que não era nada fácil em meio a tantas rezas com peregrinação direta ao inferno para  infratores como ela. Sentia-se tão desorientada, que assim que perdeu a virgindade aos quinze, correu até a casa e pegou uma faca. Em seguida a deixou cair sobre o chão. Pensou que se se cortasse, pudesse as impurezas de seu corpo evaporar, mas faltou-lhe coragem. Afastou-se de tais ideias, em proporção ao seu apego rebelde ao sexo.
  Pois bem, estavam decididos, casariam-se apenas no papel. Ela ficou responsável de ir até o cartório buscar informações para a formalização. Se deparou com uma mulher que em abstração enxergou de tal forma: um nariz arrebitado por uma superficialidade elevada. Unhas pintadas para cobrir seus vazios abertos pela cutícula e os efeitos do tempo burocrático eram explicitamente perceptíveis, com roupa e maquiagem em uma aparente fuga ineficaz da gravidade, como fazem as crianças, testando-a a todo tempo. Imóvel, ficou pensando se a senhora não se sentia degradada diante do espelho e temia uma possível semelhança com aquele ser depois de uns anos. Se sentiu má por pensar aquilo.
  Por um momento não sabia o que fazia ali, diante de tal figura inexplicavelmente ameaçadora. Era como se as pernas tivessem levado seu corpo inconsciente, mecanicamente em encontro daquele lugar horrível. Com a boca seca de sufoco, atravessou como ventania a porta e foi a beira do valão do outro lado da rua, perder-se os olhos ao longe, observando as mutações das nuvens, com as colorações do céu. Parte de seu tempo avesso à necessidade da realidade era dedicado as formas que via quando olhava pra cima, assim se confortava, na possibilidade simples de não ser, a mobilidade da neblina no céu a livrava da vida de concreto e naquele momento era o que a acalmava.
Decidi ir até ao parque para pensar suas escolhas tortas. Tinha como de costume esses passeios pelo menos uma vez por semana, brincava de tentativa de interação com a natureza. Quando passava o vento, soprava forte, assim sentia que o calor fugido de sua boca, acarinhava as pessoas, com seus remelexos de calafrio. Agora, diferente de sempre, está triste, avista o portão e corre até de baixo da arvore, deita-se na grama, como uma criança. Desajeitada, de pernas e braços abertos, com indiferença as penicações que correm ao corpo. Imune a tudo que não é si. 
  Admira uma folha, que se distingue do todo, se sente a folha,  afinal todos buscam o destaque pela diferença. Sem saber se dorme com os olhos abertos ou entra em um transe real, se transforma no vegetal. Ela se desprende do galho, ainda com seus sentidos de gente aguçados... "Ah, mas quanto egoísmo. Tamanha ousadia me desgarrar assim do grupo.Vou cair  no chão e ser pisoteada. Que ideia estúpida, agora vou sumir só...No caminho se sente diferente: Que sensação única, o prazer do rodopio, o balançado de forma distinta. Valeu a pena ainda que agora eu esteja de baixo da terra. Saboreio minha corrosão em tempo que por direito é individualmente meu. 
Depois da alucinação, compreende que precisa repensar o casamento. Para o Estado seu corpo é um número, seu casamento será mais um dado. Estava pobre de vida. Vai para casa, onde combina com o namorado de encontrar-se. Ele já está lá, estendido na cama quando ela chega, com um ar inerte, mas que talvez seja pensado para esconder a ansiedade. Ela, fica feliz com seu semblante, assim é mais fácil. Eles sabem que se entendem e que sentem bem juntos, e isso é suficiente, e isso é perceptível no silêncio. O amor, o amor nunca fez sentido para nenhum, nem outro, pois não sabiam o que significava. Mas essa coisa de roteiro da vida definitivamente não era pra ela. A folha precisava da experiência de voo, sem pouso certo. Decisões são tomadas por impulsos racionais. Ela dá a noticia, quer terminar tudo.
  Imediatamente, sem buscar diálogo, ele sai e vai embora. Em completo descontrole, as lágrimas caminham pela boca, pescoço até chegar ao peito. Sustentações são perigosas, principalmente quando elas não são nossas próprias pernas. A queda é certa, encontra concreto, não passa do chão e dói um bocado. Ele vai pra casa com muita dor.
No outro dia ela acorda e vai lavar roupa com o corpo mais leve que de costume. O cheiro de imperfeição está nas roupas lavadas no tanque, e, sobretudo o que é imperfeito nos traz formas desencaixotadas de refletir, pensa isso enquanto esfrega as camisas. Lembra-se então do ditado popular do passarinho. “Passarinho que acompanha morcego acorda de cabeça pra baixo”. Que sorte do passarinho, poder acordar com um outro ponto de vista.  
           Sente vontade de fumar um cigarro, ainda que tenha feito poucas vezes na vida, sabe que a brincadeira é perigosa, por sua formação ou por questões obvias. Talvez exatamente por isso esteja com vontade de acender um, precisa sentir o corpo vivo, mas a sensação não vem. Se olha no espelho e ele está completamente limpo, em geral quem tem espelho limpo,  escova mal os dentes. Sente-se suja em cada pequeno buraco de seu corpo como em seu primeiro sexo, a sensação primeira, como aquela do pão doce.
           Liga para sua melhor amiga, as paredes bem pintadas a enlouquecerão a qualquer momento. Se encontram, mas não consegue concentrar-se em conversa alguma, seus pensamento estão voltados para ele. O complexo de mulher medíocre chega a sua cabeça. Na sua frente uma mosca em círculos, agoniza dançante e traduz exatamente o que ela está sentindo.
            Se dá conta de que seus pés também não estavam no chão, e sua sustentação é frágil. Onde se encontrava o apoio durante todo aquele tempo? Provavelmente, ele responderia prontamente com seus conhecimentos de "psico-traumas", Segundo Freud: "Cristovão carregava Cristo, Cristo carregava o mundo inteiro; onde, então, Cristóvão apoiava o pé?"... Passa uma semana e ela vai procurá-lo. Ele não está. A mãe informa que em seguida que eles terminaram, ele fez as malas e viajou.
            Ela vai para casa, acende um cigarro, se dependura no parapeito da janela, e sente uma espécie de formigamento que lhe corre todo o corpo amolecendo-o de descontrole até cair, direto para cama. Amanhã é outro dia. Ela é jovem, passa rápido. Em breve descobrirá que não há caminho para a liberdade. A liberdade é a própria contradição.
  Já ele, estava tão mal, com seus planos destruídos, tão sem rumo e cheio de uma mobilidade não escolhida, que concluiu que a única forma de parar se sofrer, era deixar de viver. Optou pelo sofrimento, fez a mochila e foi viver os planos de liberdade da ex-namorada, talvez pelos últimos traumas ou talvez só por uma mudança de personalidade. 
  Para chegar a rodoviária foi de metrô. Do outro lado, observava a porta oposta se abrir, o que acarretava rotineiramente uma briga voraz, sem parâmetros morais em busca de um banco. A porta abriu, a correria começou, ele esperou que todos entrassem, depois foi até o meio do metrô com as bochechas elevadas de riso formando rugas perversas nos cantos dos olhos, e de corpo inteiro sarcástico, cruzou olhar com cada uma daquelas pessoas. Aquela cena nada mais era que a representação do humano, da perversidade escancarada. É que as pessoas fazem tão pouco sentido quanto o amor.

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