sábado, 23 de agosto de 2014

O câncer da burocracia


"Oh burocratas, que ódio vos tenho 
e se fosse apenas ódio
é ainda o sentimento da vida
que perdi sendo um dos vossos."

(Carlos Drummond de Andrade)


Prezo muito pela voz das imagens e nesta postagem tenho um grande problema, pois não passou nem uma peça ou filme pela minha cabeça que pudesse ser vinculado com o texto, apenas me recordei da bela poesia do Drummond, que diz muito sobre o mesmo. Este foi o meu primeiro conto longo, que aliás, torço muito para que secretamente vocês não tenham preguiça de ler. Eu o mandei para um concurso de contos e como escritora fracassada não fiquei nem entre os vinte primeiros...aposto que na banca só tinham burocratas (risos).Brincadeiras a parte, para finalizar, estou me surpreendendo com a quantidade de visualizações, mas tenho sentido falta da participação destes "expectadores-escritores", que inclusive podem me ajudar com indicação de peças ou filme ou idéias ou qualquer tipo de troca. Boa noite e sonhos libertadores, se preferirem, a todos.







O câncer da burocracia

            Seu canto finalmente encontra sentido...É o pássaro mais belo. De todos, o mais livre. Mesmo com os mais perigosos rodopios, indo o mais distante que consegue, nunca se sente liberto o bastante. Enquanto todos vão a favor do vento, ele vai contra. Subiu o máximo que podia. Corpo de angustia por uma falta que desconhece em busca do infinito. Nem um rio inteiro, conseguiria matar sua sede, a incompletude não cessa. Tudo não é o bastante. Acabaram-se as forças. Na imensidão do céu, o pássaro perde a voz, sufocou-se com o peso da liberdade. Desacordou, queda livre despropositada. Acorda na gaiola. Está preso e feliz, inadmissivelmente feliz, enquanto preso.
            O velho desperta suando, desorientado, não admite que o sonho se resuma a sua aposentadoria. Abaixa a cabeça, e da espinha aos dedos das mãos sente um arrepio de dor, treme de solidão. Escorrega deprimido pra debaixo do lençol. Quer matar-se. Mas burocratizou-se demais para cogitar suicídio. Seus olhos estão secos, a anos não chora. Arrasta o braço até à cabeceira da cama, tateia o maço e acende um cigarro.  
            Fica tempos imobilizado e depois começa a se contorcer com a quebra da rotina, com a improdutividade dos segundos que se passam. Não há a quem recorrer. É macho e bem resolvido demais para procurar um analista. Não tem ninguém. Em seu trabalho não alimentava relações, para sua auto afirmação, travava as pessoas de forma a humilha-las e expô-las satirizando e acusando-as por incompetência. No fundo, crê que as despreza. Não aguenta suas vozes, suas conversas e as risadas lhe dão fadiga. Em raridade quando sorri por boas maneiras, segundos depois torce o nariz. Nada lhe traz interesse.
            Recorda-se de um ocorrido importante... Em enterro da sua mãe, secretamente sentia um grande alivio por ter uma responsabilidade a menos, sentia leveza pelo tempo que agora teria de dedicação aos seus papéis e ao ofício da repartição. Sufocava-o o dever de ter uma mãe. Ao fim, quando dirigia para casa, sorria por se livrar da obrigação, estava contente, enquanto sonhava com a garrafa de vinho para sua discreta comemoração. E na noite deste mesmo dia dormiu de forma profunda como nunca havia antes. Diante de tal lembrança que lhe percorria a cabeça, se sentia o mesmo, nem dor, nem remorso, apenas o vazio de não sentir, que lhe causava uma leve perturbação.
            Seu ego tá abalado por sua invisibilidade diante do mundo, sua frieza é quase dispensável. Teatra uma tragédia, ainda, que tenha dúvidas se não caminha à fuga de um desespero real.
            Assim, consegue levantar-se. A hora avançara. O relógio de parede marca quatro da tarde. Decide abdicar dos cigarros pelo resto do dia. Não abre mão das garrafas de vinho. Delírios em líquido ajudam a diminuir o desencontro com o tempo. Seu discurso de ser-sozinho, tá esfalecendo ao chão. Vai novamente para horizontal, mas dessa vez cai no tapete, procurando pensar o futuro inexistente. Sensações estranhas lhe correm o corpo, mesmo fixo ao chão, sente pequenas quedas, como o assusto dos cochilos leves. Até então só vivia de compreensões e certezas. Sofre com as dúvidas ebulidas. Se enrosca ao pano aveludado e jura nunca mais se mexer, além de muito confortável lhe serve como proteção à vida que passa sem sentido na rua. Madeira, moldura e maçaneta escancaram o correr do vento, do céu e do asfalto que já não cumprem mais suas funções, tirando-lhe assim qualquer possibilidade energética, como fuga a apatia.
            Está velho demais para continuar a encenação, para além disso, o seu palco ausenta expectadores. Fica de pé e decide que pelo menos tentará ser útil a si. Lida tão serenamente com a perversidade, que decide compreender o abismo entre sua natureza e suas escolhas, a descoberta do que pode ser mais doloroso: sua insignificância diante da humanidade ou se sua própria falta de humanidade.
            No dia seguinte, acorda e arruma a mala, segundo os livros de autoajuda, nada como uma viagem a um espaço bucólico para ir de encontro ao seu eu. Se dirige à rodoviária... e é claro, não toma coragem para ir a lugar algum, a não ser, sentir mais vontade de retornar a sua residência... Mas acontece algo inédito, ele se permite a inércia de observar, enquanto tenta uma auto compreensão.
            Observa reflexivamente as cenas que se passam na rodoviária. Primeiramente: Dois meninos despem os pés, e movimentam o corpo, tocando um para o outro uma bola invisível. Em sua mente, lembranças são desencadeadas, relembra seus dias de trabalho, do momento em que saía de casa, até o bater do ponto no serviço. Olhar, ouvir, ver, escutar de detalhes nunca lhe teve importância. Nunca se deparava com dias distintos, eram como engrenagens automáticas. Dissertava: "Há o que contribua mais com o mundo que a ociosidade da observação. Estou certo, que a lentidão de fato, nunca serviu. E que nem haveria de servir, ora. Sua existência na contra mão, se deve a pressa que se tornou burra demais para ser produtiva e isso com certeza dá um baita de um prejuízo". Em seguida, cortava bruscamente o devaneio. Abaixava a cabeça, e não deixava os olhos desviarem da mesa, existia um prazo para trabalhar. O relógio marcava seis da tarde e a meta do dia ainda nem havia sido atingida. Quando acontecia, fazia hora extra, trabalhava dobrado. Em lugares como esses, a maior abundancia é de cafeína. Não se chateava. Em sua mesa, virada para janela, a distração do trem que corria diariamente, nunca obteve sua atenção.
            O ar passa espesso demais por sua garganta, como se propositalmente bloqueasse sua respiração. Presenciar o que passava diante de seus olhos, lhe fazia de maneira dura redescobrir a imaginação, de quando garoto, perdida em meio às paredes e ao seu trabalho mecânico, pobre, repetitivo, que não lhe permitia o interesse da criação sem a busca pela excelência. Enfim questionava-se, pela segunda vez: será que aquela papelada empilhada fez algum sentido durante todos esses anos? Da primeira vez que se fez a mesma pergunta, foi vítima de uma peça pregada pela memória ou talvez pelo excesso. Certa vez ao chegar em casa sóbrio de rigidez, embriagado de álcool, foi fingir ser investigador, estava tão descontraído que até se permitia tirar sarro de si. Na ocasião teve a ousadia de afirmar que os papéis não diziam nada e, procurando entender porque tanto poder de fala daquelas folhas, sacou uma lupa da gaveta e observou o mais perto que pode à procura de bocas nos papéis, desiludido percebeu que eles não a possuíam. Concluiu que a autoridade não é argumentativa. Vomitou e depois caiu trêbado, no dia seguinte de nada mais se recordava.
            Segunda cena: Ao lado, uma mulher descabelada, do tipo, avoada demais para ser inteligente, com um salto meio desequilibrado, olhos vermelhos de choro, atordoada, andava de um lado pro outro, se dizendo perdida, ela lhe pedia ajuda sentada bem ao seu lado, sua perna despropositadamente roçava a dele, enquanto de forma agitada tocava em suas mãos. Neste momento, seu corpo gritava, tinha desejo, se sentia excitado e tremulo por descobrir seus resquícios de virilidade.
            Seus pensamentos fogem e encontram a Menina Maria. Quando moço conheceu Maria, menina doce, vinda do interior à capital em busca de trabalho, morava em um quartinho tão pequeno, que se assemelhava uma caixa de fósforo. Durante a semana era explorada em casa de família, mas a menina era pura gratidão, ganhava as roupas velhas e usadas da patroa e rodava de felicidade com os presentes. Se envergonhava só em pensar de cobrar as horas extras por ficar com as crianças, pelos jantares até altas horas dos patrões. Mas ora, eles eram tão bons pra ela. Seu único tempo de descanso eram os minutos de almoço que se recolhia na cozinha para comer os restos e aos domingos quando podia encontrar seu amado. Virgem e cheia de vida, sonhava como todas as moças de sua idade encontrar um bom pretendente e ter muitos filhos.
Ele, inicialmente apenas se concentrava nas pernas da menina. Com o desejo de ser homem bem sucedido, temia as ideias miúdas de Maria. Com o passar do tempo se rende e começa a encantar-se, vê beleza em seus olhos aguados, admira seu sorriso com curvas no canto da boca, Maria era a única pessoa que ele divertia-se em escutar. Se descobria feliz com ela. E então, certo dia, a convence de ir até sua casa. Maria tinha as pernas bambas, mas transbordava felicidade, pela primeira vez, seria amada. Levou-a ao quarto, deitou-a na cama e matou todos os seus desejos acumulados, enquanto ao pé do ouvido, arriscava um "eu te amo". Ao acabar, pra ele é claro, olhava pro teto, enquanto ela ainda sangrava, de forma elegante e educada olhou firme em seus olhos e pediu que a moça se retirasse. Estava seco.  A presença dela era repugnantemente indiferente. Maria se levantou cambaleando dolorida e envergonhada e saiu de olhos baixos aos soluços. Depois disso, nunca mais tocou uma mulher, queria esquecer seu corpo e distanciar-se da barbárie dos impulsos. O que acontecia na rodoviária dava-lhe tontura.
            Por fim, antes de partir, avista ao fim do corredor da rodoviária, uma ambulante em companhia de seu filho vendendo frutas. O menino entra em um caixote e coloca outro sob a cabeça, em seguida pede ajuda, gritando estar preso dentro de um amendoim, sabe-se lá o que ronda a cabeça das crianças. Dentre as situações mais complexas que vivera e relembrara nada o instigava mais que aquela cena. Porque alguém há de se prender, para em seguida gritar ajuda para sair?
            Ao fundo uma criança chora e ele agradece por nunca ter sido avô. O choro incessante comprime seus nervos. Quer fugir do tumulto daqueles viajantes tontos. Precisa de um banho frio. Quando menino se sentia mais livre, ainda que meio medroso, meio cauteloso, seus receios contrapunham-se com seus impulsos, dispensava o romantismo da vida, gostava apenas de atiçar seus sentidos. Amava água, mas odiava a hierarquia do chuveiro, que só à trazia de cima. Só em meio a ela, se sentia ser parte dela também. Pulava da pedra mais alta pra sentir seu coração bater forte e, ao afundar nas águas do mar, com o corpo adormecido, se sentia como um respiro. Boiava sereno enquanto esvaziava a mente olhando o infinito azul.
            Resolve correr até o táxi, com seu terno indigno do calor do Rio de Janeiro, sai da caixa motorizada, vai até a praia e deixa a mala sob a areia, despe-se como quem é capaz de tocar o invisível e dá vida a cada pedaço do corpo com a provocação da temperatura da água. Quer expandir-se até o nada, assim como faz o horizonte. Tá disposto a viver.
            Ao sair do mar, de corpo falante, pisa na areia e tem um desmaio. Queda livre despropositada. Acorda no hospital, o médico diagnostica câncer. Não vai durar muito. Vai pra casa, senta em sua cadeira acolchoada, escolhe sua melhor pose, pega o maço, acende prepotência e acompanhando as lágrimas empoeiradas que correm seu rosto, uma deliciosa gargalhada. Não compreende nada, apesar de estar tudo muito claro. Mas vai ver, são apenas os raios do pôr do sol batendo em seu rosto. Sem dor, sem amor, com só. Dentre a insignificância e a desumanização, compreende a charada. Está morrendo e feliz, inadmissivelmente feliz enquanto vivo.

Maria Carolina Abreu, 15 Abril de 2014



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