"Oh burocratas, que ódio vos tenho
e se fosse apenas ódio
é ainda o sentimento da vida
que perdi sendo um dos vossos."
(Carlos Drummond de Andrade)
Prezo muito pela voz das imagens e nesta postagem tenho um grande problema, pois não passou nem uma peça ou filme pela minha cabeça que pudesse ser vinculado com o texto, apenas me recordei da bela poesia do Drummond, que diz muito sobre o mesmo. Este foi o meu primeiro conto longo, que aliás, torço muito para que secretamente vocês não tenham preguiça de ler. Eu o mandei para um concurso de contos e como escritora fracassada não fiquei nem entre os vinte primeiros...aposto que na banca só tinham burocratas (risos).Brincadeiras a parte, para finalizar, estou me surpreendendo com a quantidade de visualizações, mas tenho sentido falta da participação destes "expectadores-escritores", que inclusive podem me ajudar com indicação de peças ou filme ou idéias ou qualquer tipo de troca. Boa noite e sonhos libertadores, se preferirem, a todos.
O câncer da burocracia
Seu
canto finalmente encontra sentido...É o pássaro mais belo. De todos, o mais
livre. Mesmo com os mais perigosos rodopios, indo o mais distante que consegue,
nunca se sente liberto o bastante. Enquanto todos vão a favor do vento, ele vai
contra. Subiu o máximo que podia. Corpo de angustia por uma falta que
desconhece em busca do infinito. Nem um rio inteiro, conseguiria matar sua
sede, a incompletude não cessa. Tudo não é o bastante. Acabaram-se as forças.
Na imensidão do céu, o pássaro perde a voz, sufocou-se com o peso da liberdade.
Desacordou, queda livre despropositada. Acorda na gaiola. Está preso e feliz,
inadmissivelmente feliz, enquanto preso.
O velho
desperta suando, desorientado, não admite que o sonho se resuma a sua
aposentadoria. Abaixa a cabeça, e da espinha aos dedos das mãos sente um
arrepio de dor, treme de solidão. Escorrega deprimido pra debaixo do lençol.
Quer matar-se. Mas burocratizou-se demais para cogitar suicídio. Seus olhos
estão secos, a anos não chora. Arrasta o braço até à cabeceira da cama, tateia
o maço e acende um cigarro.
Fica
tempos imobilizado e depois começa a se contorcer com a quebra da rotina, com a
improdutividade dos segundos que se passam. Não há a quem recorrer. É macho e
bem resolvido demais para procurar um analista. Não tem ninguém. Em seu
trabalho não alimentava relações, para sua auto afirmação, travava as pessoas
de forma a humilha-las e expô-las satirizando e acusando-as por incompetência.
No fundo, crê que as despreza. Não aguenta suas vozes, suas conversas e as
risadas lhe dão fadiga. Em raridade quando sorri por boas maneiras, segundos
depois torce o nariz. Nada lhe traz interesse.
Recorda-se
de um ocorrido importante... Em enterro da sua mãe, secretamente sentia um
grande alivio por ter uma responsabilidade a menos, sentia leveza pelo tempo
que agora teria de dedicação aos seus papéis e ao ofício da repartição.
Sufocava-o o dever de ter uma mãe. Ao fim, quando dirigia para casa, sorria por
se livrar da obrigação, estava contente, enquanto sonhava com a garrafa de
vinho para sua discreta comemoração. E na noite deste mesmo dia dormiu de forma
profunda como nunca havia antes. Diante de tal lembrança que lhe percorria a
cabeça, se sentia o mesmo, nem dor, nem remorso, apenas o vazio de não sentir,
que lhe causava uma leve perturbação.
Seu ego
tá abalado por sua invisibilidade diante do mundo, sua frieza é quase
dispensável. Teatra uma tragédia, ainda, que tenha dúvidas se não caminha à fuga
de um desespero real.
Assim,
consegue levantar-se. A hora avançara. O relógio de parede marca quatro da
tarde. Decide abdicar dos cigarros pelo resto do dia. Não abre mão das garrafas
de vinho. Delírios em líquido ajudam a diminuir o desencontro com o tempo. Seu
discurso de ser-sozinho, tá esfalecendo ao chão. Vai novamente para horizontal,
mas dessa vez cai no tapete, procurando pensar o futuro inexistente. Sensações
estranhas lhe correm o corpo, mesmo fixo ao chão, sente pequenas quedas, como o
assusto dos cochilos leves. Até então só vivia de compreensões e certezas. Sofre
com as dúvidas ebulidas. Se enrosca ao pano aveludado e jura nunca mais se
mexer, além de muito confortável lhe serve como proteção à vida que passa sem
sentido na rua. Madeira, moldura e maçaneta escancaram o correr do vento, do
céu e do asfalto que já não cumprem mais suas funções, tirando-lhe assim
qualquer possibilidade energética, como fuga a apatia.
Está
velho demais para continuar a encenação, para além disso, o seu palco ausenta
expectadores. Fica de pé e decide que pelo menos tentará ser útil a si. Lida
tão serenamente com a perversidade, que decide compreender o abismo entre sua
natureza e suas escolhas, a descoberta do que pode ser mais doloroso: sua
insignificância diante da humanidade ou se sua própria falta de humanidade.
No dia
seguinte, acorda e arruma a mala, segundo os livros de autoajuda, nada como uma
viagem a um espaço bucólico para ir de encontro ao seu eu. Se dirige à
rodoviária... e é claro, não toma coragem para ir a lugar algum, a não ser,
sentir mais vontade de retornar a sua residência... Mas acontece algo inédito,
ele se permite a inércia de observar, enquanto tenta uma auto compreensão.
Observa
reflexivamente as cenas que se passam na rodoviária. Primeiramente: Dois
meninos despem os pés, e movimentam o corpo, tocando um para o outro uma bola
invisível. Em sua mente, lembranças são desencadeadas, relembra seus dias de
trabalho, do momento em que saía de casa, até o bater do ponto no serviço.
Olhar, ouvir, ver, escutar de detalhes nunca lhe teve importância. Nunca se
deparava com dias distintos, eram como engrenagens automáticas. Dissertava:
"Há o que contribua mais com o mundo que a ociosidade da observação. Estou
certo, que a lentidão de fato, nunca serviu. E que nem haveria de servir, ora.
Sua existência na contra mão, se deve a pressa que se tornou burra demais para
ser produtiva e isso com certeza dá um baita de um prejuízo". Em seguida,
cortava bruscamente o devaneio. Abaixava a cabeça, e não deixava os olhos
desviarem da mesa, existia um prazo para trabalhar. O relógio marcava seis da
tarde e a meta do dia ainda nem havia sido atingida. Quando acontecia, fazia
hora extra, trabalhava dobrado. Em lugares como esses, a maior abundancia é de
cafeína. Não se chateava. Em sua mesa, virada para janela, a distração do trem
que corria diariamente, nunca obteve sua atenção.
O ar
passa espesso demais por sua garganta, como se propositalmente bloqueasse sua
respiração. Presenciar o que passava diante de seus olhos, lhe fazia de maneira
dura redescobrir a imaginação, de quando garoto, perdida em meio às paredes e
ao seu trabalho mecânico, pobre, repetitivo, que não lhe permitia o interesse
da criação sem a busca pela excelência. Enfim questionava-se, pela segunda vez:
será que aquela papelada empilhada fez algum sentido durante todos esses anos?
Da primeira vez que se fez a mesma pergunta, foi vítima de uma peça pregada
pela memória ou talvez pelo excesso. Certa vez ao chegar em casa sóbrio de
rigidez, embriagado de álcool, foi fingir ser investigador, estava tão
descontraído que até se permitia tirar sarro de si. Na ocasião teve a ousadia
de afirmar que os papéis não diziam nada e, procurando entender porque tanto
poder de fala daquelas folhas, sacou uma lupa da gaveta e observou o mais perto
que pode à procura de bocas nos papéis, desiludido percebeu que eles não a
possuíam. Concluiu que a autoridade não é argumentativa. Vomitou e depois caiu
trêbado, no dia seguinte de nada mais se recordava.
Segunda
cena: Ao lado, uma mulher descabelada, do tipo, avoada demais para ser
inteligente, com um salto meio desequilibrado, olhos vermelhos de choro,
atordoada, andava de um lado pro outro, se dizendo perdida, ela lhe pedia ajuda
sentada bem ao seu lado, sua perna despropositadamente roçava a dele, enquanto
de forma agitada tocava em suas mãos. Neste momento, seu corpo gritava, tinha
desejo, se sentia excitado e tremulo por descobrir seus resquícios de
virilidade.
Seus
pensamentos fogem e encontram a Menina Maria. Quando moço conheceu Maria,
menina doce, vinda do interior à capital em busca de trabalho, morava em um
quartinho tão pequeno, que se assemelhava uma caixa de fósforo. Durante a
semana era explorada em casa de família, mas a menina era pura gratidão,
ganhava as roupas velhas e usadas da patroa e rodava de felicidade com os
presentes. Se envergonhava só em pensar de cobrar as horas extras por ficar com
as crianças, pelos jantares até altas horas dos patrões. Mas ora, eles eram tão
bons pra ela. Seu único tempo de descanso eram os minutos de almoço que se
recolhia na cozinha para comer os restos e aos domingos quando podia encontrar
seu amado. Virgem e cheia de vida, sonhava como todas as moças de sua idade
encontrar um bom pretendente e ter muitos filhos.
Ele, inicialmente apenas se
concentrava nas pernas da menina. Com o desejo de ser homem bem sucedido, temia
as ideias miúdas de Maria. Com o passar do tempo se rende e começa a
encantar-se, vê beleza em seus olhos aguados, admira seu sorriso com curvas no
canto da boca, Maria era a única pessoa que ele divertia-se em escutar. Se
descobria feliz com ela. E então, certo dia, a convence de ir até sua casa.
Maria tinha as pernas bambas, mas transbordava felicidade, pela primeira vez,
seria amada. Levou-a ao quarto, deitou-a na cama e matou todos os seus desejos
acumulados, enquanto ao pé do ouvido, arriscava um "eu te amo". Ao
acabar, pra ele é claro, olhava pro teto, enquanto ela ainda sangrava, de forma
elegante e educada olhou firme em seus olhos e pediu que a moça se retirasse.
Estava seco. A presença dela era
repugnantemente indiferente. Maria se levantou cambaleando dolorida e
envergonhada e saiu de olhos baixos aos soluços. Depois disso, nunca mais tocou
uma mulher, queria esquecer seu corpo e distanciar-se da barbárie dos impulsos.
O que acontecia na rodoviária dava-lhe tontura.
Por fim,
antes de partir, avista ao fim do corredor da rodoviária, uma ambulante em
companhia de seu filho vendendo frutas. O menino entra em um caixote e coloca
outro sob a cabeça, em seguida pede ajuda, gritando estar preso dentro de um
amendoim, sabe-se lá o que ronda a cabeça das crianças. Dentre as situações
mais complexas que vivera e relembrara nada o instigava mais que aquela cena.
Porque alguém há de se prender, para em seguida gritar ajuda para sair?
Ao fundo
uma criança chora e ele agradece por nunca ter sido avô. O choro incessante
comprime seus nervos. Quer fugir do tumulto daqueles viajantes tontos. Precisa
de um banho frio. Quando menino se sentia mais livre, ainda que meio medroso,
meio cauteloso, seus receios contrapunham-se com seus impulsos, dispensava o
romantismo da vida, gostava apenas de atiçar seus sentidos. Amava água, mas
odiava a hierarquia do chuveiro, que só à trazia de cima. Só em meio a ela, se
sentia ser parte dela também. Pulava da pedra mais alta pra sentir seu coração
bater forte e, ao afundar nas águas do mar, com o corpo adormecido, se sentia
como um respiro. Boiava sereno enquanto esvaziava a mente olhando o infinito
azul.
Resolve
correr até o táxi, com seu terno indigno do calor do Rio de Janeiro, sai da
caixa motorizada, vai até a praia e deixa a mala sob a areia, despe-se como
quem é capaz de tocar o invisível e dá vida a cada pedaço do corpo com a
provocação da temperatura da água. Quer expandir-se até o nada, assim como faz
o horizonte. Tá disposto a viver.
Ao sair
do mar, de corpo falante, pisa na areia e tem um desmaio. Queda livre
despropositada. Acorda no hospital, o médico diagnostica câncer. Não vai durar
muito. Vai pra casa, senta em sua cadeira acolchoada, escolhe sua melhor pose,
pega o maço, acende prepotência e acompanhando as lágrimas empoeiradas que
correm seu rosto, uma deliciosa gargalhada. Não compreende nada, apesar de
estar tudo muito claro. Mas vai ver, são apenas os raios do pôr do sol batendo
em seu rosto. Sem dor, sem amor, com só. Dentre a insignificância e a
desumanização, compreende a charada. Está morrendo e feliz, inadmissivelmente
feliz enquanto vivo.
Maria Carolina Abreu, 15 Abril de 2014
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