sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Qual é o seu nome?

Quando eu era pequena assisti o filme Estamira e soube tempos depois que as pessoas o achavam muito pesado, eu achava esquisito eles acharem aquilo. Pois bem, eu fui crescendo e levei algumas recordações, de falas, de cenas, tudo me marcou de uma forma estranha. Lembro que ao fim do filme eu falei pra mim mãe: -Mãe queria comer o macarrão da Estamira. Ela me causava encantamento, e eu tinha muita vontade de conhecê-la. Até que soube de sua morte, que me tocou muito. Mas ESTA MIRA tudo vê, está em todos os lugares e me presenteou com uma outra sábia mulher. A história narrada abaixo é baseada em fatos reais, mas não se esqueçam: É apenas uma obra literária. Evitem ler lúcidos, segundo a própria, a lucidez não deixa ver.






Qual é o seu nome?


      Não são para muitos o estranhamento com as gaiolas empilhadas feitas de pedra. Eu faço parte do outro grupo junto com uma senhora suja que vive no meu andar. Na porta de sua gaiola, existe um batalhão, que anda meio desorientado sem saber o que procuram, mas que mesmo na invisibilidade do nascer do sol e do descer da lua, habitam diariamente aquele lugar. A estratégia do batalhão é genial, pois causa permanente asco no resto daquela gente que não sofre de estranhamento, garantindo assim, território livre dentro da gaiola. 

   De antenas em pé, as vezes alguns se aventuram no vazio branco do corredor, ousam tentar tirar o juízo dos sensatos que habitam as gaiolas vizinhas. Buscam frestas, em tentativa fracassada de encontrar luz ou comida. Da minha gaiola escuto o barulho dos spray's das vizinhas, me causam aflição, me fazem encolher e querer tapar os ouvidos. A violência daquele ruído somado ao seu tempo de duração indicam que definitivamente eles não querem matar apenas insetos.
   Essa gente que ocupa este lugar se veem, se esbarram, mas não se enxergam. Deve ser mesmo culpa da lucidez que cega os olhos saudáveis. Nesta invisibilidade, os sentidos destes, parecem ser rígidos e inertes de expressão, inclusive a fala. A troca de vozes só acontecem pelas amarras morais da civilização. Dentro desta exceção de troca, resolvem se reunir, mas suas presenças para fora de suas gaiolas parecem se camuflar com o aspecto frio e vazio do corredor. 
   O ponto central do burburim era solicitar a dedetização da gaiola vazia das tardes com gente. A gaiola de marcas pretas na porta e pó preto pelo chão. A gaiola sem tapete. Solicitação da anulação da gaiola que é diferente, que ofusca todas as outras, ainda que seja a mais oprimida, é como se a defesa da gaiola fosse sintoma de agressão. Um pouco das narrativas:

-Essa velha só chega de noite pra ninguém ver.
-Mas e os filhos?
-Isso daí tem família? 
-Eu não aguento mais
-O porteiro diz que tem lixo até o teto
-Temos que ir todos...

   Fechei a porta e fui sofrer como um pássaro sem canto. Não ousei a fala, palavras tem muito poder (e aquelas pessoas ou não sabem disso ou sabem muito sobre) preferi responder com o silêncio. Eu não queria que ela se fosse, mas com certeza não ficaria ali sem sua coleção de objetos que a protegem, sem seu batalhão, sem sua sujeira para ter anti-corpos suficientes e não adoecer de sujeira humana.         Murchamos as duas, sua presença me atormentava e quando vi, estava completamente envolvida com a senhora, mesmo que eu estivesse de forma oculta. Sem ter sido preciso uma palavra trocada, sem precisar vê-la com frequência, me envolvi angustiadamente com a simples existência de um ser humano que eu sequer conhecia, mas que precisava por perto para me proteger também. 
   Eu queria a elevação através da sujeira assim como a dela e ela foi fundamental pra essa descoberta. Por exemplo, levei muito tempo para admitir para mim mesmo que a minha nudez não era suja, não era feia, e não falo sobre essa admissão no sentido moral, porque no campo do discurso, a nudez me era sempre admissível, assim como ela é admissível para o mundo quando padronizada...digo no sentido estético, de encontrar beleza nas diferenças que meu corpo apresentava para mim, de engolir o nojo do mundo diante das minhas imperfeições que nascem conosco como se fossem pra gente sofrer. 
   Toda essa ânsia que o mundo vomita sobre nós duas se tornou fonte de libertação. A sua presença, ainda que de andar tímido e arrastado pelos cantos me soava uma grande afirmação que resgatava minha história, minha identidade. Ela me mostrou o lixo, eu a respondi com nudez.
  De fato não deu outra, ela teve que esvaziar o apartamento, o corredor que até então era um vácuo se encheu de fantasia e sofrimento. De sua gaiola eram despejados sacos e sacos de histórias, de armaduras, de guardas chuvas. Ao fim destas pilhas de sacolas na direção de sua gaiola para a minha, havia e escada do prédio, onde ela ficava sentada, que coincidia de ficar ao lado de minha porta. Eu ficava inerte ao encontrá-la, me dava frio na barriga, coração acelerado, era uma ameaça (querida) pra mim.
   Seus olhos cabisbaixos de trapo me penetravam a alma. Olhos que parecem sentir a dor da vida, que carrega consigo a solidão de nascença. Seus olhos distantes e misteriosos, me fazem ter dúvidas se são tristes ou se estão tristes por invadirem, aprisionarem sua gaiola, que até então era a mais livre. Cada frecha de ar da gaiola, foi vedada. Sua melancolia era tanta, que eu me indagava sua relação com essa clareza agressiva da sociedade e me pergunta a forma como vivia lhe causava mais dor ou imunidade.
  O cheiro que fugia destes sacos me embrulhava o estômago. O cheiro me perseguia mesmo quando eu estava longe de casa. Estava impregnado no meu nariz, no meu corpo, no meu organismo, estava entranhado em mim e não havia banho que o carregasse, além disso, junto com ele me vinham os olhos de trapos. Para os outros o odor era ainda mais insuportável, pois era cheiro de uma realidade que não cabia ali, de um perfume não-artificial, não-máscara.                  Absurdamente aquele fedor passou a fazer parte de mim.
Eu a cumprimentava todas as vezes que a via e era a única que fazia do meu andar, eu perguntava se estava tudo bem e ela sempre respondia que mais ou menos, de cabeça baixa, com seu belo vestido de pano que parecia com seus olhos. Um dia eu falei que se precisasse de algo ela poderia pedir, era só tocar ao lado, ela levantou a cabeça e agradeceu.
  Esse foi um grande passo pra mim, que sempre ficava paralisada em seu encontro, conseguia entrar no caminho sem rumo de suas expressões, quando falava com ela, mas nos comunicávamos também com o silêncio de nossas posturas, com corpos abatidamente curvados. Eu fantasiava nossos encontros e imaginava um monte de versões para sua história, eu queria escutá-la, conhecê-la, queria que ela dividisse um pouco de seus ex-passos comigo. Sua coragem me enchia de novas questões e um sentimento de impotência por saber do meu medo de expor a loucura que já habita a minha cabeça. Eu mesma tranco e prendo o que há dentro da gaiola que carrego em mim.
  O tempo foi passando e os dias foram ficando mais doentes, porque ela partiria junto com seu batalhão pra outro luga. Em breve eu teria que viajar e ficava a cada dia mais ansiosa de saber se ela continuaria, ou se na minha volta não teria mais a minha proteção. No dia da viagem, por um motivo que não me recordo, estava alegre, coloquei a mochila nas costas, saí de casa, e lá estava ela sentada. O elevador estava em um andar próximo, eu chamei. Olhei pra ela, com um sorriso de olhos, dei boa tarde, disse até logo e entrei no elevador, antes que a porta se fechasse ela me olhou e perguntou: Qual é o seu nome? Respondi e devolvi a pergunta, ao finzinho de seu nome, a porta do elevador fechou. Eu viajei, ela foi embora e não voltou.
   Eu comecei a escrever esta história pouco depois de nos conhecermos e aos poucos eu ia preenchendo espaços do texto e de quem o escreve. Mas Quando ela se foi, levou uma parte de mim, que me impossibilitava continuar a escrever. A falta que ela trazia parecia me desumanizar, a mim e a todo este andar que perdera o gosto. Até hoje fico imaginado, sorridente, seu lixo tomando todo o prédio e limpando toda a podridão das gaiolas empilhadas, enquanto no nosso canto, a gente observa o vírus da paranoia se espalhar.
   Ontem eu regressei da universidade e no outro bloco vi uma senhora que me lembrava ela e fiquei feliz. Em seguida chegou uma moça e comentou com o porteiro de forma maledicente: -Ela só chega de noite pra ninguém ver né? Ele ri e confirma. Ela continua: Dia desses eu a vi subindo aqui. Ele novamente em um riso cômico-sínico responde: É ela tá voltando a encher aqui também. A sua existência perto de mim destravou meus dedos para essa escrita, os ombros curvados de desânimo e apenas por existir provoca a gaiola de minha cabeça: Quando lutará por liberdade?
   Ah, esqueci de um detalhe importante, pouco tempo depois dela ir embora, a fresta de minha porta apareceu lacrada, tá até hoje, não ouso tocar, apenas fico muito, mas muito feliz. 

Continua...?

Maria Carolina Abreu, Atemporal.

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