Quando eu
era pequena assisti o filme Estamira e soube tempos depois que as pessoas o achavam muito
pesado, eu achava esquisito eles acharem aquilo. Pois bem, eu fui crescendo e levei algumas recordações, de
falas, de cenas, tudo me marcou de uma forma estranha. Lembro que ao fim do filme
eu falei pra mim mãe: -Mãe queria comer o macarrão da Estamira. Ela me causava
encantamento, e eu tinha muita vontade de conhecê-la. Até que soube de sua
morte, que me tocou muito. Mas ESTA MIRA tudo vê, está em todos os lugares e me presenteou com uma
outra sábia mulher. A história narrada abaixo é baseada em fatos reais, mas não
se esqueçam: É apenas uma obra literária. Evitem ler lúcidos, segundo a
própria, a lucidez não deixa ver.
Qual é o seu nome?
Não são para muitos o estranhamento com as
gaiolas empilhadas feitas de pedra. Eu faço parte do outro grupo junto com uma
senhora suja que vive no meu andar. Na porta de sua gaiola, existe um batalhão,
que anda meio desorientado sem saber o que procuram, mas que mesmo na
invisibilidade do nascer do sol e do descer da lua, habitam diariamente aquele
lugar. A estratégia do batalhão é genial, pois causa permanente asco no resto
daquela gente que não sofre de estranhamento, garantindo assim, território
livre dentro da gaiola.
De antenas em pé, as vezes alguns se aventuram no vazio branco do corredor,
ousam tentar tirar o juízo dos sensatos que habitam as gaiolas vizinhas. Buscam
frestas, em tentativa fracassada de encontrar luz ou comida. Da minha gaiola
escuto o barulho dos spray's das vizinhas, me causam aflição, me fazem encolher
e querer tapar os ouvidos. A violência daquele ruído somado ao seu tempo de
duração indicam que definitivamente eles não querem matar apenas insetos.
Essa gente que ocupa este lugar se veem, se esbarram, mas não se enxergam. Deve
ser mesmo culpa da lucidez que cega os olhos saudáveis. Nesta invisibilidade,
os sentidos destes, parecem ser rígidos e inertes de expressão, inclusive a
fala. A troca de vozes só acontecem pelas amarras morais da civilização. Dentro
desta exceção de troca, resolvem se reunir, mas suas presenças para fora de
suas gaiolas parecem se camuflar com o aspecto frio e vazio do corredor.
O
ponto central do burburim era solicitar a dedetização da gaiola vazia das tardes com
gente. A gaiola de marcas pretas na porta e pó preto pelo chão. A gaiola sem
tapete. Solicitação da anulação da gaiola que é diferente, que ofusca todas as
outras, ainda que seja a mais oprimida, é como se a defesa da gaiola fosse
sintoma de agressão. Um pouco das narrativas:
-Essa velha só chega de noite pra ninguém ver.
-Mas e os filhos?
-Isso daí tem família?
-Eu não aguento mais
-O porteiro diz que tem lixo até o teto
-Temos que ir todos...
Fechei a porta e fui sofrer como um pássaro sem canto. Não ousei a fala,
palavras tem muito poder (e aquelas pessoas ou não sabem disso ou sabem muito
sobre) preferi responder com o silêncio. Eu não queria que ela se fosse, mas
com certeza não ficaria ali sem sua coleção de objetos que a protegem, sem seu
batalhão, sem sua sujeira para ter anti-corpos suficientes e não adoecer de
sujeira humana. Murchamos as duas, sua presença me atormentava e quando vi,
estava completamente envolvida com a senhora, mesmo que eu estivesse de forma
oculta. Sem ter sido preciso uma palavra trocada, sem precisar vê-la com
frequência, me envolvi angustiadamente com a simples existência de um ser
humano que eu sequer conhecia, mas que precisava por perto para me proteger
também.
Eu queria a elevação através da sujeira assim como a dela e ela foi fundamental
pra essa descoberta. Por exemplo, levei muito tempo para admitir para mim mesmo
que a minha nudez não era suja, não era feia, e não falo sobre essa admissão no
sentido moral, porque no campo do discurso, a nudez me era sempre admissível,
assim como ela é admissível para o mundo quando padronizada...digo no sentido
estético, de encontrar beleza nas diferenças que meu corpo apresentava para
mim, de engolir o nojo do mundo diante das minhas imperfeições que nascem
conosco como se fossem pra gente sofrer.
Toda essa ânsia que o mundo vomita
sobre nós duas se tornou fonte de libertação. A sua presença, ainda que de
andar tímido e arrastado pelos cantos me soava uma grande afirmação que
resgatava minha história, minha identidade. Ela me mostrou o lixo, eu a
respondi com nudez.
De fato não deu outra, ela teve que esvaziar o apartamento, o corredor que até
então era um vácuo se encheu de fantasia e sofrimento. De sua gaiola eram
despejados sacos e sacos de histórias, de armaduras, de guardas chuvas. Ao fim
destas pilhas de sacolas na direção de sua gaiola para a minha, havia e escada
do prédio, onde ela ficava sentada, que coincidia de ficar ao lado de minha
porta. Eu ficava inerte ao encontrá-la, me dava frio na barriga, coração
acelerado, era uma ameaça (querida) pra mim.
Seus olhos cabisbaixos de trapo me penetravam a alma. Olhos que parecem sentir
a dor da vida, que carrega consigo a solidão de nascença. Seus olhos distantes
e misteriosos, me fazem ter dúvidas se são tristes ou se estão tristes por
invadirem, aprisionarem sua gaiola, que até então era a mais livre. Cada frecha
de ar da gaiola, foi vedada. Sua melancolia era tanta, que eu me indagava sua
relação com essa clareza agressiva da sociedade e me pergunta a forma como
vivia lhe causava mais dor ou imunidade.
O cheiro que fugia destes sacos me embrulhava o estômago. O cheiro me perseguia
mesmo quando eu estava longe de casa. Estava impregnado no meu nariz, no meu
corpo, no meu organismo, estava entranhado em mim e não havia banho que o
carregasse, além disso, junto com ele me vinham os olhos de trapos. Para os
outros o odor era ainda mais insuportável, pois era cheiro de uma realidade que
não cabia ali, de um perfume não-artificial, não-máscara. Absurdamente aquele
fedor passou a fazer parte de mim.
Eu a cumprimentava todas as vezes que a via e era a única que fazia do meu
andar, eu perguntava se estava tudo bem e ela sempre respondia que mais ou
menos, de cabeça baixa, com seu belo vestido de pano que parecia com seus
olhos. Um dia eu falei que se precisasse de algo ela poderia pedir, era só
tocar ao lado, ela levantou a cabeça e agradeceu.
Esse foi um grande passo pra mim, que sempre ficava paralisada em seu encontro,
conseguia entrar no caminho sem rumo de suas expressões, quando falava com ela,
mas nos comunicávamos também com o silêncio de nossas posturas, com corpos
abatidamente curvados. Eu fantasiava nossos encontros e imaginava um monte de
versões para sua história, eu queria escutá-la, conhecê-la, queria que ela
dividisse um pouco de seus ex-passos comigo. Sua coragem me enchia de
novas questões e um sentimento de impotência por saber do meu medo de expor a
loucura que já habita a minha cabeça. Eu mesma tranco e prendo o que há dentro
da gaiola que carrego em mim.
O tempo foi passando e os dias foram ficando mais doentes, porque ela partiria
junto com seu batalhão pra outro luga. Em breve eu teria que viajar e ficava a
cada dia mais ansiosa de saber se ela continuaria, ou se na minha volta não
teria mais a minha proteção. No dia da viagem, por um motivo que não me
recordo, estava alegre, coloquei a mochila nas costas, saí de casa, e lá estava
ela sentada. O elevador estava em um andar próximo, eu chamei. Olhei pra ela,
com um sorriso de olhos, dei boa tarde, disse até logo e entrei no elevador,
antes que a porta se fechasse ela me olhou e perguntou: Qual é o seu nome?
Respondi e devolvi a pergunta, ao finzinho de seu nome, a porta do elevador
fechou. Eu viajei, ela foi embora e não voltou.
Eu comecei a escrever esta história pouco depois de nos conhecermos e aos
poucos eu ia preenchendo espaços do texto e de quem o escreve. Mas Quando ela
se foi, levou uma parte de mim, que me impossibilitava continuar a escrever. A
falta que ela trazia parecia me desumanizar, a mim e a todo este andar que
perdera o gosto. Até hoje fico imaginado, sorridente, seu lixo tomando todo o
prédio e limpando toda a podridão das gaiolas empilhadas, enquanto no nosso
canto, a gente observa o vírus da paranoia se espalhar.
Ontem eu regressei da universidade e no outro bloco vi uma senhora que me
lembrava ela e fiquei feliz. Em seguida chegou uma moça e comentou com o
porteiro de forma maledicente: -Ela só chega de noite pra ninguém ver né? Ele
ri e confirma. Ela continua: Dia desses eu a vi subindo aqui. Ele novamente em
um riso cômico-sínico responde: É ela tá voltando a encher aqui também. A sua
existência perto de mim destravou meus dedos para essa escrita, os ombros
curvados de desânimo e apenas por existir provoca a gaiola de minha cabeça:
Quando lutará por liberdade?
Ah, esqueci de um detalhe importante, pouco tempo depois dela ir embora, a
fresta de minha porta apareceu lacrada, tá até hoje, não ouso tocar, apenas
fico muito, mas muito feliz.
Continua...?
Maria Carolina Abreu, Atemporal.

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