quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Cegueira sem biologia

...Fica como indicação o documentário Janela da Alma.










Eu sustento com palavras o silêncio do meu abandono

(Manoel de Barros)


Como uma forma de introdução sociabilizo um trechinho antigo: 


No caminho pra casa

Ah! Tudo passa devagar demais! O caminho do ônibus para casa, o elevador, o sinal que passa eternos minutos fechado. Ah! Como tudo passa rápido demais! Já é hora de descer do ônibus em meio de meus pensamentos, tenho que correr para chegar ao outro lado antes que o sinal feche, o elevador me leva em casa antes da hora. Por favor me deem tempo sem ansiedade! Neste vai e vem eu só sinto enjoo...



Cegueira sem biologia

Em uma cidade impaciente taxada adjetivamente por via da abstração de maravilhosa, um senhor de pernas tímidas que bambeiam a todo tempo brinca de distração desafiando o equilíbrio. Mas têm pernas firmes de orgulho como se fossem feitas de borboletas livres que se transformam quando invadem minha barriga em uma sensação de medo e insegurança. As borboletas parecem voar por nosso corpos de forma diferente. Eu estou dentro do ônibus sentada e observo o homem senil de vistas cegas que não passa pela roleta pois descerá logo adiante, apenas dois pontos após ao que embarcou. Ele desce sob uma pressão de pressa do motorista e neste mesmo momento o sinal para pedestres abre, as pessoas que aguardavam o enxergam e a corrida para chegar ao outro lado parecem ganhar adição de fuga de uma ameaça de desaceleração travestida de gente da mesma espécie. Observando a cena fico confusa com a biologia do enxergar, o que exatamente caracteriza a cegueira? Me deparava então, em uma cidade de cegos, que enxergam a rua, a luz do sinal, mas não os olhos uns dos outros, me ocupava uma mistura de pena e raiva de um mundo deficiente, com pessoas cheias de incapacidades e limitações. O senhor fica só, enquanto mais uma multidão passa desviando do desejo do tempo parado ali, desviando de si mesmos. O sinal para carros abre, o velho tenta atravessar, o carro buzina e ele retorna, terá que esperar o que o sinal se feche novamente. Pra mim era possível fotografar ali o que significa estar em meio a muitas pessoas e ainda estar só, sem romantismo. Lágrimas querem descer dos meus olhos envergonhados, ao descobrirem que talvez sejam cotidianamente invisibilizadores. Me sinto um pouco do abandono dele. Enxergar, vai ver, é uma das nossas maiores deficiências.

Maria Carolina Abreu 20/11/2014

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Mudez






Mudez

Finalmente ela acordara sem voz. Está completamente desesperada. Sente falta de ar porque a sua primeira comunicação vetada é consigo mesma, um embaralho de pensamentos que não são expulsos em sua briga interna diária, de quando ainda cedo começa a andar pela casa enquanto despeja possíveis explicações, antigas discussões e as diferentes linhas de reflexões que ela tem consigo. O sentimento de desejo e impotência pode ser ilustrado em um corpo caindo de um abismo. A sensação que lhe percorre se assemelha a uma fadiga como o ranger dos dentes ou o lanhar de unhas na parede. Mesmo assim, tenta não esquecer que esse é um desejo que está em silêncio faz meses, e ora, se seus desejos têm obrigação moral de serem silenciados para que a fala? Sorri enquanto pensa por esse outro lado e sente um conforto de pensar que não precisará de auto-flagelo repensando diariamente tudo que diz em suas contradições como se suas palavras tivessem de fato essa relevância. A dor da insegurança, da dúvida, do que não foi falado, do que deveria ser retratado, dos argumentos falaciosos de autoridade vão aos poucos sumindo. A sua fala impotente, prepotente a presenteia como a impotência da mudez. A falta da voz talvez faça a existência da pequenina ficar mais leve. Tenta se acalmar, ainda que com um turbilhão passando por sua cabaça naqueles poucos minutos em que está acordada, pós-descoberta. Tem consciência que sua perda é um sintoma histérico, mas que infelizmente sabe que pode ser tratado por Jesus, um psicanalista, ou quem sabe até na relação entre ela e sua cabeça. Vai até a janela, sua vizinha tem um passarinho que canta engaiolado, quer dizer pia, mas com um olhar desorientado enquanto pula entre dois pedacinhos de madeira sem parar, uma espécie de vigília despreocupada avisada. A menina não se comunica com o vigilante de asas, mas outros pássaros parecem fazer esta comunicação através do canto. Pensa sobre o que é a captura das falas dos bichos para suprir caprichos ou talvez carências dos seres humanos. Esta carência deve ficar clara dentro da perspectiva dos pássaros que também enxergam as pessoas através de suas grades, as pessoas do outro lado presas, sem canto. Ela está nua na janela, enquanto de cima dá a impressão de que cerca de três moradores de rua ficam a observá-la, ela não sai do lugar, mas se sente mal por pensar o corpo de uma forma despolitizada, depois ri e dá de ombros porque não tem voz e, portanto nada de crucifixo, vai continuar da janela nua, se comunicando com o corpo nu, cheio de voz, barulhos e sinais, na busca da compreensão dos seres humanos vizinhos que se apropriam da rua e quem sabe por isso, por estarem fora da gaiola, tem corpo e voz invisíveis. É como se o grupo e a menina estivessem fazendo um jogo poético de invisibilidade pela janela. Ela volta pra sala, são muitos sons naturalizados fora de casa que invadem o espaço e parecem embolar sua garganta, tem vontade de vomitar um mundo que perpassa pelo seu corpo, um mundo que é intencionalmente barulhento para não escutar o calado. Está ansiosa para saber como vai ser o seu dia de muda, desce do seu apartamento e dá bom dia ao porteiro.

Maria Carolina Abreu, 12/11/2014

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Coisas -que eu não escrevi- de quando criança

Coisas -que eu não escrevi- de quando criança







Maria, você tá sempre buscando os caminhos mais fáceis”

Na rua um homem tem um cigarro na mão, enquanto no meio da rua de frente para o ponto faz sinal pro ônibus vir devagar e os movimentos das suas mãos ao vento parece tentar indicar onde ele deve passar, logo depois muito barulho e as latinhas que ele havia espalhado pelo asfalto eram amassadas, vinha outro e a cena se repetia...

Quando pequena acho que não tinha clara essa reflexão na minha cabeça, mas se hoje eu pudesse elaborar uma resposta para tal acusação, acho que colocaria a culpa em terceiros, como o homem das latinhas que se apropria da cidade para realizar trabalho.

Tenho todo dia uma fuga pra minha não apropriação. E talvez por isso eu escute desde menina como um mantra “Maria, você é muito lenta”. A minha lerdeza me salvou e hoje posso me encontrar feliz, mas não sem angústias nos poemas do Manuel de Barros e nos do Fernando Pessoa. A minha lerdeza não foi apropriada pela pressa irracional.

A minha repressão resultou em silêncios incompreensíveis, mas que hoje tem mais significado de reflexão da fala do que de submissão. Me ensina cotidianamente a repeitar tempo e silêncio do outro. Me ensinou escuta e observação. E por explosões veladas, me grita sobre o desejo de enlouquecer. “Essa aí tem boca e não fala né?”. A repressão não se apropriou das minhas formas de comunicação. O silêncio meu deu a escrita.

Vive com a cabeça na lua/ Só tem cabeça pra carregar piolho”. De fato o que eu mais carreguei durante minha vida foram piolhos, podia colecioná-los se quisesse, mas se querem saber eles serviram mais em minha formação na minha relação com as pessoas de que qualquer outra coisa. Se minha cabeça tivesse no pescoço eu não estaria aqui e o moço das latinhas seria aos meus sentidos mais uma apropriação de um sujeito pela cidade.


Que fique claro eu não tenho ideia  da estrutura de uma poesia, mas não tem problema este detalhe certamente (pra mim) é o que há de menos poético. Tenho um caderno que de poesias de quando era menina, acho que faltava essa lá.



Eu me aproprio de mim, fujo.


A pressa alheia tentava me acelerar
Eu lenta, eu tonta, eu lesma
aprendi antes a gozar

O mundo adulto não sabia enlouquecer
São lentos, são tontos, são lesmas
Achando que sabem o que é crescer

Em meio a tantas ordens descabidas
meu silêncio debochava
do que chamavam “de ser alguém na vida”

A gente “cresce”
a ladainha se repete

Mas aprendei sobre apropriação
que sou tonta, sou lenta, sou lesma
para permanecer no meu processo
de criação.



De Maria para Maria, 04/11/2014