O
varredor de ruas
De repente a rotina te dá uma rasteira
e te faz novamente lembrar do chão. Lembrar de um lugar cheio de símbolos, onde
os pés pisam e as vistas distraídas os fazem cair. Folhas, muitas folhas. As que
voam nos lugares mais altos com segurança, que dançam livres presas as raízes.
Mas terminam debaixo dos pés dos que não podem ou não sabem ou não querem
dançar. Param de baixo dos pés mais nobres e dos pés mais pobres. Dos pés
pequeninos, que dão os primeiros passos romanticamente forçados e dos pés
senis. Pés dos sapatos de grife e dos pés calejados. Dos pés envergonhados por
seus sorrisos de rachadura. Pés que tocam a terra por costume, por prazer, por
ser assim. Pés que tocam o asfalto por necessidade. E lá estão as folhas.
Folhas e a pena do pombo, aquele que morreu recentemente na avenida ou daquele
que querem matar nos botecos. Pode ser pombo que comeu a pipoca da praça e
espantou-se pela corrida inocente das crianças repreendidas pelos pais. Folhas
e muitos canudos. Dos que te alimentam no seu estado vegetativo, vivo ou morto.
Mais folhas. E caixas de remédio, talvez dos que te façam dormir ou que insistam
pra que você acorde. Talvez aquelas caixas de propaganda do prefeito do
interior. Caixas de remédio que te prenderam no manicômio, aquele lugar
histérico que não te escuta. Talvez as caixas do conhecimento popular urbano,
dos princípios passivos. A caixa que é placebo e veneno, aquela do acesso sem
saber moral. O caminho tem mais folhas. Folhas e cotonete. Os cotonetes
descartados são como um ensaio sobre os
ouvidos surdos. É a arte mais ralé da cidade. É lixo. Cera dos zumbidos,
sujeira do dia-a-dia. Tropeço inusitado dos ouvidos. No fim do caminho, folhas.
Folhas e uma nota fiscal. Aquela que cobra a sua culpa e vende sua juventude. O
pedaço de papel. O papel é talvez, a maior dor contemporânea de nossa
sociedade. Papel de números tem perversidade. Possuem todas as malicias do
mundo em forma de traços. É astuta. Te injeta desejo e fome. Te condiciona, te
aprisiona e depois te mata. O papel da rua te dá dignidade, história e honra. O
papel da rua te engambela, te conta história e é criativo também. A nota te
seleciona e te barra. Ela decide quem entra, ainda que você tenha lá os seus
papéis. Ela determina onde esses outros papéis entrarão. Ela te massacra e te
dá o pódio. Não há vida sem essa nota fiscal do chão, no fim do caminho. Ela te
enlouquecerá, pois com ou sem pano, ela é capaz de te amordaçar. O papel sai
daquele banco de todas as esquinas que você pode sentar. A vassoura era um
pouco torta, tinha pêlos marrons que começavam de um lado pequenos e terminavam
maiores na outra ponta. O velho tinha uma cabeça branca, totalmente branca,
parecia totalmente velho. A pá era lata cortada de forma diagonal. Era como se
fosse um quarteirão pequeno para frente e lá de trás ele começava. Vassouradas
curtas, mas firmes. Aos poucos dava paras pequenas folhas pisoteadas um novo
lugar. Umas por umas. Varria alguma coisa e o meu relapso. Varria o meu olhar
distante. Varria meus desejos pro lixo. Meu nó na garganta pro lixo. Tava
varrendo o que não existia. Era isso! Varria pra lata o que não havia. Jogava
pra algum lugar o nosso não existir. Ninguém o percebia. Era como um doce
fantasma que nos assombra nas escolhas difíceis. Com aquele passo miúdo que
avançava e com as mãos duras, sujas e doces fazia eu sentir meu coração. Órgão
com corpo. Varria entre o canto do paralelepípedo e o asfalto, em um canal que
faz as veias saltarem quando brocham. Se o bueiro da cidade não encher na
próxima chuva, eu juro que o culpo por não me afogar. As baratas passam por cima
das folhas. E alçam pequenos vôos. Ela pousa no varredor de ruas. Ele a
expulsa com naturalidade. Porque sujo mesmo, é esse terreno cheio de folhas,
que você finge ser quintal da cidade podre que você mora e a que mora em você.
Sem expectativas, caso tenha vindo ao mundo pra brincar. Do contrário, segue
sua vida e esqueça o chão, porque ele é concreto, mas para os vencedores, é
também precipício. Quando me assaltarem a fala, não esqueçam de deixar aquele
primeiro toque quente do prazer.