segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

O varredor de ruas

O varredor de ruas


De repente a rotina te dá uma rasteira e te faz novamente lembrar do chão. Lembrar de um lugar cheio de símbolos, onde os pés pisam e as vistas distraídas os fazem cair. Folhas, muitas folhas. As que voam nos lugares mais altos com segurança, que dançam livres presas as raízes. Mas terminam debaixo dos pés dos que não podem ou não sabem ou não querem dançar. Param de baixo dos pés mais nobres e dos pés mais pobres. Dos pés pequeninos, que dão os primeiros passos romanticamente forçados e dos pés senis. Pés dos sapatos de grife e dos pés calejados. Dos pés envergonhados por seus sorrisos de rachadura. Pés que tocam a terra por costume, por prazer, por ser assim. Pés que tocam o asfalto por necessidade. E lá estão as folhas. Folhas e a pena do pombo, aquele que morreu recentemente na avenida ou daquele que querem matar nos botecos. Pode ser pombo que comeu a pipoca da praça e espantou-se pela corrida inocente das crianças repreendidas pelos pais. Folhas e muitos canudos. Dos que te alimentam no seu estado vegetativo, vivo ou morto. Mais folhas. E caixas de remédio, talvez dos que te façam dormir ou que insistam pra que você acorde. Talvez aquelas caixas de propaganda do prefeito do interior. Caixas de remédio que te prenderam no manicômio, aquele lugar histérico que não te escuta. Talvez as caixas do conhecimento popular urbano, dos princípios passivos. A caixa que é placebo e veneno, aquela do acesso sem saber moral. O caminho tem mais folhas. Folhas e cotonete. Os cotonetes descartados  são como um ensaio sobre os ouvidos surdos. É a arte mais ralé da cidade. É lixo. Cera dos zumbidos, sujeira do dia-a-dia. Tropeço inusitado dos ouvidos. No fim do caminho, folhas. Folhas e uma nota fiscal. Aquela que cobra a sua culpa e vende sua juventude. O pedaço de papel. O papel é talvez, a maior dor contemporânea de nossa sociedade. Papel de números tem perversidade. Possuem todas as malicias do mundo em forma de traços. É astuta. Te injeta desejo e fome. Te condiciona, te aprisiona e depois te mata. O papel da rua te dá dignidade, história e honra. O papel da rua te engambela, te conta história e é criativo também. A nota te seleciona e te barra. Ela decide quem entra, ainda que você tenha lá os seus papéis. Ela determina onde esses outros papéis entrarão. Ela te massacra e te dá o pódio. Não há vida sem essa nota fiscal do chão, no fim do caminho. Ela te enlouquecerá, pois com ou sem pano, ela é capaz de te amordaçar. O papel sai daquele banco de todas as esquinas que você pode sentar. A vassoura era um pouco torta, tinha pêlos marrons que começavam de um lado pequenos e terminavam maiores na outra ponta. O velho tinha uma cabeça branca, totalmente branca, parecia totalmente velho. A pá era lata cortada de forma diagonal. Era como se fosse um quarteirão pequeno para frente e lá de trás ele começava. Vassouradas curtas, mas firmes. Aos poucos dava paras pequenas folhas pisoteadas um novo lugar. Umas por umas. Varria alguma coisa e o meu relapso. Varria o meu olhar distante. Varria meus desejos pro lixo. Meu nó na garganta pro lixo. Tava varrendo o que não existia. Era isso! Varria pra lata o que não havia. Jogava pra algum lugar o nosso não existir. Ninguém o percebia. Era como um doce fantasma que nos assombra nas escolhas difíceis. Com aquele passo miúdo que avançava e com as mãos duras, sujas e doces fazia eu sentir meu coração. Órgão com corpo. Varria entre o canto do paralelepípedo e o asfalto, em um canal que faz as veias saltarem quando brocham. Se o bueiro da cidade não encher na próxima chuva, eu juro que o culpo por não me afogar. As baratas passam por cima das folhas. E alçam pequenos vôos. Ela pousa no varredor de ruas. Ele a expulsa com naturalidade. Porque sujo mesmo, é esse terreno cheio de folhas, que você finge ser quintal da cidade podre que você mora e a que mora em você. Sem expectativas, caso tenha vindo ao mundo pra brincar. Do contrário, segue sua vida e esqueça o chão, porque ele é concreto, mas para os vencedores, é também precipício. Quando me assaltarem a fala, não esqueçam de deixar aquele primeiro toque quente do prazer.

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