sábado, 27 de agosto de 2016

Não recomendado





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Não recomendado


Mantinha um sorriso distraído pelas ruas, e quando percebia, passava então a rir de si mesmo. Um tímido sorriso, onde sua intensidade não significava desespero. Talvez um exagero na dificuldade em se manter conectado com a realidade, como se além da cama, seus sonhos seguissem até às ruas, e nesta dúvida, sem saber o que é imaginação, se perdesse nas ruas e passasse do ponto, só por esquecer que no mundo real o tempo existe e o sopro da brisa, ironicamente invisível, sacoleja aquele aperto no coração de tristeza, que também não pode se visto e portanto não é possível  saber se o que se sente existe. É o tempo todo desconfiança, o olhar ao redor, paredes, calor, barulho de trem, pessoas. Pessoas estranham aquele seu sorriso para o vazio, a contemplação inevitável do inútil. Como o nada poderia completar um ser de uma forma a preencher cada espaço de si? Corpos machucados, corpos duros, corpos pronto para atacar, prontos pra resistir, corpos mecânicos, que sacodem nos transportes, que dormem exaustos, que gritam, que deprimem, corpos que se comunicam por si só. O que a distração nos prepara, é como uma onda sem drogas que nunca passa, então ela simplesmente o engole, como se ele estivesse completamente sozinho na praia e ficasse imerso na água, depois arremessado várias vezes, virando de cabeça pra baixo, ralando na areia, enquanto entra água no nariz... mas não é tão desesperador assim, em alguns segundos, ela volta. E nesse ciclo nenhum dos dois consegue sair por mais insuportável que seja para ambos. Que pessoa estranha, penso eu, na dependência tranqüila do caos, no corpo levado, perdido nas camas por que passa, corpo lavado, manipulado, degustado, corpo enxotado, corpo que se esconde, que ta o tempo todo perdido, vagando, se odiando pela leviandade. Ele tem corpo tímido, massacrado diariamente pelo tempo. É um corpo não recomendado, sem tempo para consertos, como pode ser tão tosco? Os corpos que encontra se escondem em casulos, enquanto sua casca desmorona, e voar não é ar, é obrigação. E o sofrimento por vezes ta nas asas, que precisam se mostrar, sem poder naquele pequenino lugar dentro de si, a permissão de sofrer e elas ao invés de bater para longe, ser provedora de um próprio carinho. Corpos fortes e viris, almas dilaceradas. Afirmações, afrontas, desafios, e impotência nas unhas roídas, no tremor quase imperceptível dos corpos. Corpos com tantas dores, embora pareça que só o corpo dele, parece mostrar os bichos em suas feridas abertas, falar sobre si enquanto está completamente estático, alheio, sem medos. É colocar a própria rejeição pra jogo, enquanto desce o ardor de uma cachaça e se sentir pleno se souber se virar com isto, virar agulha no palheiro. O corpo dele não é desse mundo, é diferente, parece que carrega tudo que é impróprio, condenável, desajeitado e errôneo. O mundo não está preparado para ver esse corpo nu, embora ele insista em se despir na cama e na rua, e embora seja a representação mais lúcida e crua da liberdade, é um corpo que está sob a linha da angústia e do desconforto o tempo inteiro, a ponto de isso ser percebido pelo cheio que exala. É como um corpo que carrega o desespero que está presente no que há de mais literal do cotidiano. Ao seu redor os corpos tão medicalizados; corpos excitados pelo imediato; cheio de performances vazias e inseguras; corpos que sofrem sem parecer. Ele é o único que está são, porque seus pés, já não pisam em um chão real e sua cabeça não pensa coisas práticas e seu coração dói as vezes e o corpo dele se permite  tudo, e não quer mais se punir, nem produzir, nem deitar nas camas, nem ser conduzido por aí, é corpo que vai a exaustão por sua própria existência. É um corpo revolucionário, pois transgride os sentimentos mais dolorosos quando sai as ruas a expor-los, ele é insuportável a qualquer um ao seu redor. Ele descobriu recentemente, que corpos são muito mais feitos de traumas, do que de carne e osso. Ele foi se permitindo com o tempo que seus olhos chorassem e sua história corresse como um rio, em você se senta beira para contemplar... e o deixa fluir, levando o que já não é mais para estar. Em cada lágrima vai embora uma dor. O corpo dele é irresistivelmente desprezível,  aprendeu de uma vez por todas, na alma e na anatomia, o que significa amor próprio. A raridade deste ser vai destoando e as vezes não se sabe se ele existe, se é louco ou se é mesmo um corpo.