
Não recomendado
Mantinha um sorriso distraído
pelas ruas, e quando percebia, passava então a rir de si mesmo. Um tímido
sorriso, onde sua intensidade não significava desespero. Talvez um exagero na
dificuldade em se manter conectado com a realidade, como se além da cama, seus
sonhos seguissem até às ruas, e nesta dúvida, sem saber o que é imaginação, se
perdesse nas ruas e passasse do ponto, só por esquecer que no mundo real o
tempo existe e o sopro da brisa, ironicamente invisível, sacoleja aquele aperto
no coração de tristeza, que também não pode se visto e portanto não é possível saber se o que se sente existe. É o tempo todo
desconfiança, o olhar ao redor, paredes, calor, barulho de trem, pessoas.
Pessoas estranham aquele seu sorriso para o vazio, a contemplação inevitável do
inútil. Como o nada poderia completar um ser de uma forma a preencher cada
espaço de si? Corpos machucados, corpos duros, corpos pronto para atacar,
prontos pra resistir, corpos mecânicos, que sacodem nos transportes, que dormem
exaustos, que gritam, que deprimem, corpos que se comunicam por si só. O que a
distração nos prepara, é como uma onda sem drogas que nunca passa, então ela
simplesmente o engole, como se ele estivesse completamente sozinho na praia e
ficasse imerso na água, depois arremessado várias vezes, virando de cabeça pra
baixo, ralando na areia, enquanto entra água no nariz... mas não é tão
desesperador assim, em alguns segundos, ela volta. E nesse ciclo nenhum dos
dois consegue sair por mais insuportável que seja para ambos. Que pessoa
estranha, penso eu, na dependência tranqüila do caos, no corpo levado, perdido
nas camas por que passa, corpo lavado, manipulado, degustado, corpo enxotado, corpo
que se esconde, que ta o tempo todo perdido, vagando, se odiando pela
leviandade. Ele tem corpo tímido, massacrado diariamente pelo tempo. É um corpo
não recomendado, sem tempo para consertos, como pode ser tão tosco? Os corpos que
encontra se escondem em casulos, enquanto sua casca desmorona, e voar não é ar,
é obrigação. E o sofrimento por vezes ta nas asas, que precisam se mostrar, sem
poder naquele pequenino lugar dentro de si, a permissão de sofrer e elas ao
invés de bater para longe, ser provedora de um próprio carinho. Corpos fortes e
viris, almas dilaceradas. Afirmações, afrontas, desafios, e impotência nas
unhas roídas, no tremor quase imperceptível dos corpos. Corpos com tantas
dores, embora pareça que só o corpo dele, parece mostrar os bichos em suas
feridas abertas, falar sobre si enquanto está completamente estático, alheio, sem
medos. É colocar a própria rejeição pra jogo, enquanto desce o ardor de uma
cachaça e se sentir pleno se souber se virar com isto, virar agulha no palheiro.
O corpo dele não é desse mundo, é diferente, parece que carrega tudo que é
impróprio, condenável, desajeitado e errôneo. O mundo não está preparado para
ver esse corpo nu, embora ele insista em se despir na cama e na rua, e embora
seja a representação mais lúcida e crua da liberdade, é um corpo que está sob a
linha da angústia e do desconforto o tempo inteiro, a ponto de isso ser
percebido pelo cheio que exala. É como um corpo que carrega o desespero que
está presente no que há de mais literal do cotidiano. Ao seu redor os corpos
tão medicalizados; corpos excitados pelo imediato; cheio de performances vazias
e inseguras; corpos que sofrem sem parecer. Ele é o único que está são, porque
seus pés, já não pisam em um chão real e sua cabeça não pensa coisas práticas e
seu coração dói as vezes e o corpo dele se permite tudo, e não quer mais se punir, nem produzir,
nem deitar nas camas, nem ser conduzido por aí, é corpo que vai a exaustão por
sua própria existência. É um corpo revolucionário, pois transgride os
sentimentos mais dolorosos quando sai as ruas a expor-los, ele é insuportável a
qualquer um ao seu redor. Ele descobriu recentemente, que corpos são muito mais
feitos de traumas, do que de carne e osso. Ele foi se permitindo com o tempo
que seus olhos chorassem e sua história corresse como um rio, em você se senta
beira para contemplar... e o deixa fluir, levando o que já não é mais para
estar. Em cada lágrima vai embora uma dor. O corpo dele é irresistivelmente
desprezível, aprendeu de uma vez por
todas, na alma e na anatomia, o que significa amor próprio. A raridade deste
ser vai destoando e as vezes não se sabe se ele existe, se é louco ou se é
mesmo um corpo.
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