Não, Silvana sou eu.
-É preciso que se dê um jeito nisso, um fim, se é que você me entende. Depois podemos acertar os detalhes...
A presença dela na esquina do meu condomínio era algo que me incomoda profundamente. Todo dia, ao fazer minha caminhada vespertina, precisava passar por aquele cheiro podre, olhar aquele corpo sujo, unhas e roupas pretas e aquele cabelo desgrenhado cheio de piolhos. Sempre que passava por lá, aquelas pequenas mãos imundas se estendiam, enquanto seus olhos tentavam me convencer de que ela era uma pobre coitada.
Quando eu passava com bolsa, já tirava minha carteira de couro e abria a repartição menor, onde eu colocava as moedas que me sobraram de troco do meu café com creme da tarde anterior. Em geral, eu jogava as moedas no chão, que fazia com que ela se afastasse e eu não precisasse ter nenhum contato físico com ela.
Ela improvisava umas palavras sobre comer e se vestir. As suas roupas eram como trapos, ficavam largas nela e pareciam nunca ter sido lavadas antes. Eu nunca parava para escutá-la, afinal tinha medo que os seguranças se distraíssem e que ela aproveitasse para me atacar. O engraçado, é que as vezes eu tenho a sensação de que só eu a vejo, porque os seguranças ali não fazem nada? Morro de temor dela, por esse monte de porcarias que com certeza ela deve usar.
Silvana decide levantar da cama.
Ahhh! Já ia me esquecendo, hoje é o grande jantar de comemoração da empresa. Tomara que quem venha, não veja aquela maltrapilha dormindo aqui por perto, afinal o que vão pensar, não é mesmo?
Tenho tantas coisas para fazer, preciso encomendar as bebidas, pedi para que as crianças não exagerem na compra das suas "diversões", eles sempre me dizem que álcool não tem tanta graça. E ainda tem o meu marido, que vai chegar elétrico com aqueles olhos arregalados por causa dos "negócios". Preciso separar o calmante dele logo e aproveitar para tomar o meu mais cedo. E de forma alguma posso esquecer, preciso dar um jeito de tirar aquela drogada daqui da esquina de qualquer maneira.
O telefone toca, o buffet confirma as bebidas, o dinheiro dos crianças tá separado, e a cartela de remédios também. Tudo maravilhoso. Já posso correr para experimentar meu vestido novo que vou usar hoje de noite.
Em cima da cama meu vestido está cheiroso e passado. Na porta, a traste da empregada me observa de cabeça baixa. Peço para que ela se adiante e suma da minha frente. Tenho uma sensação estranha, é como se ela me lembrasse a mendiga, vai ver o motivo, é que são da mesma cor.
Nesta mesma cama, tem um vestido, gasto de mais pra mim que já o usei umas dez vezes. Preciso me desfazer dele, vou levar para aquela mulher da rua e aproveito para dar um jeito de me desfazer dela também.
Eu acordo, dessa vez, decido sair de manhã, peço para o motorista me esperar lá fora. Como de costume, evito qualquer contato, jogo o vestido em cima dela e deixo tudo conversado com os seguranças para que ela suma dali, para que em meu retorno ela já tenha desaparecido e para que eu não precise cruzar com ela nunca mais.
Quando volto, vejo o segurança em pé próximo ao portão conversando com uma mulher. Eu reconheço o vestido. Aliás, o vestido destoa naquele corpo mal cuidado e raquítico da mulher que me causa asco. Meu sangue sobe. Não é possível que o segurança não tenha seguido minhas ordens e dado um jeito dar o sumiço nela.
Eu me aproximo deles para escutar a conversa, e ouço ela dizer:
-É preciso que se dê um jeito nisso, um fim, se é que você me entende. Depois podemos acertar os detalhes...
Ele então responde a ela:
-Claro Dona Silvana, eu concordo com a senhora. Uma mulher como você, não pode conviver com esse tipo.
Pela primeira vez eu vejo os olhos castanhos da pedinte e escuto ela sorrir com canto de boca. E para minha surpresa, ela completa:
-Os empregados das casas já estão com inseticida prontos para matar os ratos.
Eu me desespero. Aquela conversa entre os dois não tem o menor cabimento. Eu devo estar delirando, só pode. Corro para o portão para entrar em casa. Preciso descansar, o estresse está me enlouquecendo.
No portão o segurança me para e diz: "Se tentar avançar, eu chamo a policia, é melhor ir circulando"
Silvana entra.
Eu seguro as grades e grito "NÃO, SILVANA SOU EU!"
domingo, 30 de abril de 2017
quarta-feira, 19 de abril de 2017
Eu, Ana
Eu, Ana.
Existem muitas Anas nesse mundo, por este motivo acredito que seja possível que as linhas nas quais eu me encontrei, não estivessem falando sobre nós.
Era noite já, e o acaso sem pedir licença, veio abrir feridas e lembranças. Eu não imaginava que me depararia de primeira com aquelas palavras. Foi o maior abuso do improbabilidade com o qual eu me deparei.
E lá estava eu, Ana, em claro, lendo aos poucos algo que me enchia de frio na barriga e arrepiava a minha espinha.
Faz pouco, eu pensava mais uma vez em você, enquanto estava na sala, naquele mesmo lugar que nos conhecemos. Na minha frente uma figura tão tenebrosa quanto aquela que te fez chorar em minha frente, falando coisas que eu preferia nem dar atenção. Mas mesmo ignorando o que ela dizia eu era capaz de sentir o mesmo ar de indignação, quando te encontrei atordoada depois daquela aula. Depois daquele dia, nunca mais aquele espaço foi o mesmo pra mim. Foi você que invocou meu primeiro despertar pelo meu desprezo por tudo aquilo. E é sempre lembrando de ti, que passei a pensar de que forma eu estaria ali.
Depois de tantos anos, essa foi a primeira que te escutei, pelas palavras escritas, em um lugar muito distante.
Para mim é tudo tão embaçado, a minha vida parece que é feita de pequenos lapsos de memória, é como se fosse algo breve, neboluso e confuso, e eu, a própria representação da calmaria que existe em meio ao caos.
Eu lembro que a primeira mulher que amei, essa que você reprovava e eu obviamente não percebia, era também silenciosa. Ela tinha silencio e eu tinha culpa.
No fundo achava -e ainda acho- que não me sinto segura e capaz de fazer com que mulher alguma tenha algum prazer ou que haja uma construção em que eu seja suficiente a completar uma outra mulher.
Esse foi sempre segredo meu, que divido agora com você. Talvez me deixar ser sequestrada tenha sido também mais fácil, mesmo sendo bastante feliz com tal decisão. Além disso, você sabe bem que minha displicencia e boemia fazia com que meus caminhos se tornassem ainda mais fluidos e menos atentos e nada pragmáticos.
Ah como eu gostaria de poder ter escutado. Que fossem seus gemidos do outro lado, ou suas lágrimas ou seus desejos. Eu era apenas uma menina assustada, no apartamento em Recife, azul, com todas as pressões de alguém que ainda está se descobrindo em tudo.
E você com uma bagagem gigante, me trazia tantas novas histórias. Eu tinha do meu lado da cama, uma jovem mulher com tantas vivências que eu não conseguia dimensionar.
Eu não sei o que os meus olhos diziam naquele tempo, apenas lembro que eles não estavam cansados como hoje e por isso se encantavam e brilhavam, com certeza estiveram muitas vezes entusiasmados e desejantes por ti. Mas eu não sei bem.
Tinha sofrimento seu. Muito. E talvez eu não estivesse tão presente por medo de saber que meu colo não seria suficiente.
Um dia os corpos se entrelaçaram, um lindo corpo eu já via, seus olhos, sua covinha, a sua dança estiveram dividindo a mesma cama. Que sorte, que dali não saíram lágrimas. A dor do depois é algo que nos rasga a alma.
Eu dormi. Eu durmo até hoje. E quando posso estar com ela, volto a dormir, como sempre acontece. Fui perdoada pelos meus sonos, ainda sou, fazem parte de mim. Espero que entenda, que me perdoe e que a gota que escorreu por você tenha valido a pena, mesmo sendo apenas no fim das contas alguns minutos de prazer.
Mais que um rosto, te encontro nos devaneios cotidiano. Lembro de ti, quando percebo o meu amor por todas as mulheres que estiveram de alguma forma comigo. Uma história que passou, mas que toca agora todo meu corpo e a minha frágil memória.
Não nos encontramos mais, os escritos fizeram a gentileza de não deixar essa coisa embaraçada desses tempos se perder, que sorte, embora cru e doído, foi uma linda viagem literária de uma realidade completamente alucinada.
Gostaria tanto que tivesse falado...
Com um afeto nostálgico,
Ana.
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