domingo, 30 de abril de 2017

Não, Silvana sou eu.

Não, Silvana sou eu.

-É preciso que se dê um jeito nisso, um fim, se é que você me entende. Depois podemos acertar os detalhes...
A presença dela na esquina do meu condomínio era algo que me incomoda profundamente. Todo dia, ao fazer minha caminhada vespertina, precisava passar por aquele cheiro podre, olhar aquele corpo sujo, unhas e roupas pretas e aquele cabelo desgrenhado cheio de piolhos. Sempre que passava por lá, aquelas pequenas mãos imundas se estendiam, enquanto seus olhos tentavam me convencer de que ela era uma pobre coitada. 
Quando eu passava com bolsa, já tirava minha carteira de couro e abria a repartição menor, onde eu colocava as moedas que me sobraram de troco do meu café com creme da tarde anterior. Em geral, eu jogava as moedas no chão, que fazia com que ela  se afastasse e eu não precisasse ter nenhum contato físico com ela. 
Ela improvisava umas palavras sobre comer e se vestir. As suas roupas eram como trapos, ficavam largas nela e pareciam nunca ter sido lavadas antes. Eu nunca parava para escutá-la, afinal tinha medo que os seguranças se distraíssem e que ela aproveitasse para me atacar. O engraçado, é que as vezes eu tenho a sensação de que só eu a vejo, porque os seguranças ali não fazem nada? Morro de temor dela, por esse monte de porcarias que com certeza ela deve usar.
Silvana decide levantar da cama.
Ahhh! Já ia me esquecendo, hoje é o grande jantar de comemoração da empresa. Tomara que quem venha, não veja aquela maltrapilha dormindo aqui por perto, afinal o que vão pensar, não é mesmo? 
Tenho tantas coisas para fazer, preciso encomendar as bebidas, pedi para que as crianças não exagerem na compra das suas "diversões", eles sempre me dizem que álcool não tem tanta graça. E ainda tem o meu marido, que vai chegar elétrico com aqueles olhos arregalados por causa dos "negócios". Preciso separar o calmante dele logo e aproveitar para tomar o meu mais cedo. E de forma alguma posso esquecer, preciso dar um jeito de tirar aquela drogada daqui da esquina de qualquer maneira.
O telefone toca, o buffet confirma as bebidas, o dinheiro dos crianças tá separado, e a cartela de remédios também. Tudo maravilhoso. Já posso correr para experimentar meu vestido novo que vou usar hoje de noite.
Em cima da cama meu vestido está cheiroso e passado. Na porta, a traste da empregada me observa de cabeça baixa. Peço para que ela se adiante e suma da minha frente. Tenho uma sensação estranha, é como se ela me lembrasse a mendiga, vai ver o motivo, é que são da mesma cor. 
Nesta mesma cama, tem um vestido, gasto de mais pra mim que já o usei umas dez vezes. Preciso me desfazer dele, vou levar para aquela mulher da rua e aproveito para dar um jeito de me desfazer dela também. 
Eu acordo, dessa vez, decido sair de manhã, peço para o motorista me esperar lá fora. Como de costume, evito qualquer contato, jogo o vestido em cima dela e deixo tudo conversado com os seguranças para que ela suma dali, para que em meu retorno ela já tenha desaparecido e para que eu não precise cruzar com ela nunca mais.
Quando volto, vejo o segurança em pé próximo ao portão conversando com uma mulher. Eu reconheço o vestido. Aliás, o vestido destoa naquele corpo mal cuidado e raquítico da mulher que me causa asco. Meu sangue sobe. Não é possível que o segurança não tenha seguido minhas ordens e dado um jeito dar o sumiço nela. 
Eu me aproximo deles para escutar a conversa, e ouço ela dizer:
-É preciso que se dê um jeito nisso, um fim, se é que você me entende. Depois podemos acertar os detalhes...
Ele então responde a ela:
-Claro Dona Silvana, eu concordo com a senhora. Uma mulher como você, não pode conviver com esse tipo.
Pela primeira vez eu vejo os olhos castanhos da pedinte e escuto ela sorrir com canto de boca. E para minha surpresa, ela completa:
-Os empregados das casas já estão com inseticida prontos para matar os ratos.
Eu me desespero. Aquela conversa entre os dois não tem o menor cabimento. Eu devo estar delirando, só pode. Corro para o portão para entrar em casa. Preciso descansar, o estresse está me enlouquecendo. 
No portão o segurança me para e diz: "Se tentar avançar, eu chamo a policia, é melhor ir circulando"
Silvana entra.
Eu seguro as grades e grito "NÃO, SILVANA SOU EU!"





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