-As pessoas estão preocupadas em suprir suas carências em
seu próprio tempo.
E assim eu começava mais uma de
minhas conversas filosóficas com o homem da praça. Eu resmungava e revirava os
olhos enquanto iniciava mais uma das minhas frágeis elaborações sobre a vida,
ele como de costume, sorria. Dizia que sorria ao ver meu sorriso, o engraçado
era que suportar sua presença, era porque tinha a convicção de àquilo não era
mais uma cantada barata. Estávamos ali só por estar e isso era leve como as
associações que fazemos a leveza (pena, pássaro, por do sol e todas essas
besteiras), mas talvez fosse leve como uma sacola de supermercado que vai dar
de cara no poste toda amassada e que parece voar carregando seu próprio caos.
Então eu prossegui:
-Sabe a dança? A dança se divide
em três grupos. Ou talvez quatro. Tem o primeiro, onde tá a maioria da
população, que é o grupo dos dançarinos profissionais. Sim, a maioria pertence
a esse grupo, você os olha de longe e admira, como se fosse uma das coisas mais
bonitas que já se viu, você fica constrangido perto deles até, e por alguns
momentos tem a boca cheia d’água almejando ser aquilo, perfeição da troca de
pernas, o molejo mais bonito no rebolado. Mas essas pessoas, não olham nos
olhos enquanto dançam, elas mascam chiclete e olhando pro nada, como se
estivessem no automático, não erram.
O segundo grupo é daqueles que
não sabem dançar muito bem e são desengonçados, porque fecham os olhos e entram
em suas próprias viagens enquanto exploram o corpo do outro e de olhos fechados
se permitem o ridículo, ou quase, mas se permitem despir-se, é quase como uma
foda boa.
O terceiro é o grupo do que as
pessoas chamam da “vergonha alheia”, conceito idiota e arrogante usado por todos
nós. É que fecha o olho até demais. Em um misto, de uma despreocupação
psicótica com uma busca de encontrar um lugar. Em geral se destacam, são maus
vistos e são os clássicos classificados como quem quer aparecer. Quando são
acolhidos é por pena e isso é uma coisa lamentável que nossa sociedade criou:
PENA! Aliás sempre me pergunto pensando que se a gente começasse a mudar nossa
perspectiva sobre as coisas, elas desapareceriam. O ridículo será que um dia
poderá desaparecer? Até que a diferença entre esses grupos não seja nada?
Ele olha pra mim. Está na altura
dos meus olhos, pois deitamos na grama e isso faz parecer que nosso tamanho é o
mesmo. Ele me olha fundo e meu coração acelera com seu olhar, não porque me
interesso sexualmente por ele, mas é entusiasmante o seu interesse pelos nossos
diálogos, sem que eu precise me preocupar com as neuroses da civilização. É
cheio de alegria nossos encontros. Ele então me diz:
-Prossiga! Você ainda não chegou
ao quarto grupo.
-Ah é. Aliás, tudo que eu disse
agora, não tem em absoluto a ver com a ideia principal, ao menos acho que não. Mas é o último que
guarda relação com meu primeiro desabafo... É que, embora raro, na vida
encontramos pessoas que tiram nossa roupa dançando, mas aí a dança termina,
quando você está prestes a gozar, enquanto você já saciou o outro. Aí é como
uma foda média. Sempre tem aquela sensação do meio do caminho que virou um
buraco e você caiu até ficar tudo escuro e você sentir uma raiva profunda por estar
só seguida de uma frustração que a gente é capaz de sentir no corpo e nem
consegue disfarçar.
Ele ri, não imagina que eu, a
moça da praça que conversa com ele e odeia metáforas ruins, embora tenha muitas,
me importaria com isso. Essa coisa de vagar sozinha pela cidade, perambulando,
caminhando sem rumo durante horas causa uma impressão equivocada de mim. Digo
isso, pela pergunta que ele me faz, com um sorriso que é menos dissimulado do
que por todos os últimos rostos que passei faz tanto tempo que não sei mais.
Ah, isso é maravilhoso nele também, suas perguntas não são retóricas e isso faz
com que meu coração se acalme e eu não perca as estribeiras querendo esganá-lo.
-Mas não acha que o tempo do
prazer é uma questão de perspectiva?
-Bem eu odeio a geração dos
rótulos, de verdade. E isso ficará pra nossa próxima conversa. Mas vamos
continuar trabalhando assim, nessa lógica um pouco dogmática sobre grupo de
pessoas. É verdade que a capacidade de compreensão das pessoas diverge
bastante, isso é bem complicado, porque pra pensar que as pessoas não estão
sendo cínicas, eu corro pra biologia e penso que talvez exista uma dificuldade
cognitiva mesmo, mas acho que essa é uma forma medíocre de pensar. É talvez eu
seja um pouco medíocre. Mas Deus criou a boca e a língua, a história da linguagem
eu que nunca tive capacidade cognitiva pra entender. Penso então que existem
três grupos de gente. Quando falo dos grupos, não quero que você os desenhe
longe na sua cabeça, pensa que são grupos de sujeitos que transitam entre eles,
assim a gente já destrói a marteladas nossas dicotomias e caixinhas, pode ser?
Ele gargalha e brinca comigo: - Espero
que não faça parte do grupo com dificuldades cognitivas.
-Não se trata sobre isso, agora é
sobre falar. Há o grupo que fala e ele é bastante plural! Nele têm os faladores
chatos, os moderados que organizam seus pensamentos tão bem que entendiam
qualquer ser vivo e os que não falam absolutamente nada com nada, esse eu
adoro, e é por isso que estou deitada do seu lado.
Depois tem o grupo do silêncio.
Há dificuldade pra falar em público ou falar sobre si. Nesse meio tem uma
parcela que carrega mais valores imbecis da nossa sociedade de achar que nunca
serão suficientemente interessantes, sábios, seguros pra falar.
E tem o terceiro dos
utilitaristas. Quer dizer. Realmente há um dilema aqui. Quando a gente queima
as caixinhas e rótulos tudo fica mais difícil de pensar, aquele momento que
você entende que não pode passar a vida toda colocando a culpa no outro e sim
se entender como parte do processo. Não conheço muita gente que faz isso. Tenho
pra mim que as pessoas não se reconhecem no que dizem, não percebem o que
poderíamos chamar de “sintomas”, não conseguem enxergar-se em suas repetições.
Talvez seja nesse ponto que eles se retirem quando o outro começa a sentir
prazer, não por abandono, mas porque não se reconhecem como parte de um
processo que não é voltado pra si mesmo. Não é um egoísmo escancarado ou consciente,
mas não deixa ser um egoísmo e não querer mexer nisso, porque combinemos que
gozar, dormir também é uma delícia (sem hipocrisia né, você sabe disso), é mais
grave. As pessoas ficam se inventando desculpas de uma maneira muito patética,
porque a gente acha que admitir é ferir o outro. E quanto mais seguimos essa
lógica, mais nos tencionamos e no fim mais duro somos.
Já percebeu como isso é uma
loucura? As pessoas criam uma expectativa sobre algo legal que gostariam de
fazer pra você, se a coisa dá errado, ela te culpa, porque tá se sentindo
culpada, quando a pessoa que recebia a coisa legal estava em plena harmonia. Pensa só. Você trai seu companheiro/a
e então você vai pra cima dele com muitos ciúmes e isso não é pra criar cena
pra disfarçar, você tá sentindo aquele sentimento de posse, que é onde você
encontra lugar pra depósito da tua culpa cristã.
Acho que são todos uns filhos da
puta!!!!!!!!!
A parte ruim é que eu também devo
ser. Somos miseravelmente desiguais com as nossas relações, a diferença é que
um grupo aceite que você fale isso e tem o outro que finge que nada existiu.
Essa é uma questão relativa ou as pessoas são mesmo dotadas de cinismo?
Porra, se tudo tiver a ver com o
lado que se olha, eu enlouqueço. Sou materialista. Desprender-se não pode ser
que seja tanta coisa assim. E pra piorar não somos folhas de árvore sem vida,
pra fazer uma metáfora cafona de como é soltar do galho!
-Chega! Você ainda não falou nada hoje.
Nos abraçamos. Ele me faz sentir
abraçada em todo meu desajuste, como se seus braços materializassem um mundo,
onde eu me sentisse capaz de ser a própria estupidez e ele pudesse não penetrar
meu corpo como o seu, mas visceralmente entrar em mim enquanto brinca inocente
em uma bagunça dentro da minha carne que me agonia. São tempos difíceis para se sentir bem em companhia.
Ele com seus olhos que gritam sorrisos
me pergunta (pra infindar minhas questões):
-Posso começar?