domingo, 21 de janeiro de 2018

O homem da praça

O homem da praça


-As pessoas estão preocupadas em suprir suas carências em seu próprio tempo.

E assim eu começava mais uma de minhas conversas filosóficas com o homem da praça. Eu resmungava e revirava os olhos enquanto iniciava mais uma das minhas frágeis elaborações sobre a vida, ele como de costume, sorria. Dizia que sorria ao ver meu sorriso, o engraçado era que suportar sua presença, era porque tinha a convicção de àquilo não era mais uma cantada barata. Estávamos ali só por estar e isso era leve como as associações que fazemos a leveza (pena, pássaro, por do sol e todas essas besteiras), mas talvez fosse leve como uma sacola de supermercado que vai dar de cara no poste toda amassada e que parece voar carregando seu próprio caos. Então eu prossegui:

-Sabe a dança? A dança se divide em três grupos. Ou talvez quatro. Tem o primeiro, onde tá a maioria da população, que é o grupo dos dançarinos profissionais. Sim, a maioria pertence a esse grupo, você os olha de longe e admira, como se fosse uma das coisas mais bonitas que já se viu, você fica constrangido perto deles até, e por alguns momentos tem a boca cheia d’água almejando ser aquilo, perfeição da troca de pernas, o molejo mais bonito no rebolado. Mas essas pessoas, não olham nos olhos enquanto dançam, elas mascam chiclete e olhando pro nada, como se estivessem no automático, não erram.

O segundo grupo é daqueles que não sabem dançar muito bem e são desengonçados, porque fecham os olhos e entram em suas próprias viagens enquanto exploram o corpo do outro e de olhos fechados se permitem o ridículo, ou quase, mas se permitem despir-se, é quase como uma foda boa.

O terceiro é o grupo do que as pessoas chamam da “vergonha alheia”, conceito idiota e arrogante usado por todos nós. É que fecha o olho até demais. Em um misto, de uma despreocupação psicótica com uma busca de encontrar um lugar. Em geral se destacam, são maus vistos e são os clássicos classificados como quem quer aparecer. Quando são acolhidos é por pena e isso é uma coisa lamentável que nossa sociedade criou: PENA! Aliás sempre me pergunto pensando que se a gente começasse a mudar nossa perspectiva sobre as coisas, elas desapareceriam. O ridículo será que um dia poderá desaparecer? Até que a diferença entre esses grupos não seja nada? 

Ele olha pra mim. Está na altura dos meus olhos, pois deitamos na grama e isso faz parecer que nosso tamanho é o mesmo. Ele me olha fundo e meu coração acelera com seu olhar, não porque me interesso sexualmente por ele, mas é entusiasmante o seu interesse pelos nossos diálogos, sem que eu precise me preocupar com as neuroses da civilização. É cheio de alegria nossos encontros. Ele então me diz:

-Prossiga! Você ainda não chegou ao quarto grupo.

-Ah é. Aliás, tudo que eu disse agora, não tem em absoluto a ver com a ideia principal, ao menos acho que não. Mas é o último que guarda relação com meu primeiro desabafo... É que, embora raro, na vida encontramos pessoas que tiram nossa roupa dançando, mas aí a dança termina, quando você está prestes a gozar, enquanto você já saciou o outro. Aí é como uma foda média. Sempre tem aquela sensação do meio do caminho que virou um buraco e você caiu até ficar tudo escuro e você sentir uma raiva profunda por estar só seguida de uma frustração que a gente é capaz de sentir no corpo e nem consegue disfarçar.

Ele ri, não imagina que eu, a moça da praça que conversa com ele e odeia metáforas ruins, embora tenha muitas, me importaria com isso. Essa coisa de vagar sozinha pela cidade, perambulando, caminhando sem rumo durante horas causa uma impressão equivocada de mim. Digo isso, pela pergunta que ele me faz, com um sorriso que é menos dissimulado do que por todos os últimos rostos que passei faz tanto tempo que não sei mais. Ah, isso é maravilhoso nele também, suas perguntas não são retóricas e isso faz com que meu coração se acalme e eu não perca as estribeiras querendo esganá-lo.

-Mas não acha que o tempo do prazer é uma questão de perspectiva?

-Bem eu odeio a geração dos rótulos, de verdade. E isso ficará pra nossa próxima conversa. Mas vamos continuar trabalhando assim, nessa lógica um pouco dogmática sobre grupo de pessoas. É verdade que a capacidade de compreensão das pessoas diverge bastante, isso é bem complicado, porque pra pensar que as pessoas não estão sendo cínicas, eu corro pra biologia e penso que talvez exista uma dificuldade cognitiva mesmo, mas acho que essa é uma forma medíocre de pensar. É talvez eu seja um pouco medíocre. Mas Deus criou a boca e a língua, a história da linguagem eu que nunca tive capacidade cognitiva pra entender. Penso então que existem três grupos de gente. Quando falo dos grupos, não quero que você os desenhe longe na sua cabeça, pensa que são grupos de sujeitos que transitam entre eles, assim a gente já destrói a marteladas nossas dicotomias e caixinhas, pode ser?

Ele gargalha e brinca comigo: - Espero que não faça parte do grupo com dificuldades cognitivas.

-Não se trata sobre isso, agora é sobre falar. Há o grupo que fala e ele é bastante plural! Nele têm os faladores chatos, os moderados que organizam seus pensamentos tão bem que entendiam qualquer ser vivo e os que não falam absolutamente nada com nada, esse eu adoro, e é por isso que estou deitada do seu lado.

Depois tem o grupo do silêncio. Há dificuldade pra falar em público ou falar sobre si. Nesse meio tem uma parcela que carrega mais valores imbecis da nossa sociedade de achar que nunca serão suficientemente interessantes, sábios, seguros pra falar.

E tem o terceiro dos utilitaristas. Quer dizer. Realmente há um dilema aqui. Quando a gente queima as caixinhas e rótulos tudo fica mais difícil de pensar, aquele momento que você entende que não pode passar a vida toda colocando a culpa no outro e sim se entender como parte do processo. Não conheço muita gente que faz isso. Tenho pra mim que as pessoas não se reconhecem no que dizem, não percebem o que poderíamos chamar de “sintomas”, não conseguem enxergar-se em suas repetições. Talvez seja nesse ponto que eles se retirem quando o outro começa a sentir prazer, não por abandono, mas porque não se reconhecem como parte de um processo que não é voltado pra si mesmo. Não é um egoísmo escancarado ou consciente, mas não deixa ser um egoísmo e não querer mexer nisso, porque combinemos que gozar, dormir também é uma delícia (sem hipocrisia né, você sabe disso), é mais grave. As pessoas ficam se inventando desculpas de uma maneira muito patética, porque a gente acha que admitir é ferir o outro. E quanto mais seguimos essa lógica, mais nos tencionamos e no fim mais duro somos.

Já percebeu como isso é uma loucura? As pessoas criam uma expectativa sobre algo legal que gostariam de fazer pra você, se a coisa dá errado, ela te culpa, porque tá se sentindo culpada, quando a pessoa que recebia a coisa legal estava em plena harmonia. Pensa só. Você trai seu companheiro/a e então você vai pra cima dele com muitos ciúmes e isso não é pra criar cena pra disfarçar, você tá sentindo aquele sentimento de posse, que é onde você encontra lugar pra depósito da tua culpa cristã.

Acho que são todos uns filhos da puta!!!!!!!!!

A parte ruim é que eu também devo ser. Somos miseravelmente desiguais com as nossas relações, a diferença é que um grupo aceite que você fale isso e tem o outro que finge que nada existiu. Essa é uma questão relativa ou as pessoas são mesmo dotadas de cinismo?
Porra, se tudo tiver a ver com o lado que se olha, eu enlouqueço. Sou materialista. Desprender-se não pode ser que seja tanta coisa assim. E pra piorar não somos folhas de árvore sem vida, pra fazer uma metáfora cafona de como é soltar do galho!

 -Chega! Você ainda não falou nada hoje.

Nos abraçamos. Ele me faz sentir abraçada em todo meu desajuste, como se seus braços materializassem um mundo, onde eu me sentisse capaz de ser a própria estupidez e ele pudesse não penetrar meu corpo como o seu, mas visceralmente entrar em mim enquanto brinca inocente em uma bagunça dentro da minha carne que me agonia. São tempos difíceis para se sentir bem em companhia.

Ele com seus olhos que gritam sorrisos me pergunta (pra infindar minhas questões):


-Posso começar? 

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