quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Mudez






Mudez

Finalmente ela acordara sem voz. Está completamente desesperada. Sente falta de ar porque a sua primeira comunicação vetada é consigo mesma, um embaralho de pensamentos que não são expulsos em sua briga interna diária, de quando ainda cedo começa a andar pela casa enquanto despeja possíveis explicações, antigas discussões e as diferentes linhas de reflexões que ela tem consigo. O sentimento de desejo e impotência pode ser ilustrado em um corpo caindo de um abismo. A sensação que lhe percorre se assemelha a uma fadiga como o ranger dos dentes ou o lanhar de unhas na parede. Mesmo assim, tenta não esquecer que esse é um desejo que está em silêncio faz meses, e ora, se seus desejos têm obrigação moral de serem silenciados para que a fala? Sorri enquanto pensa por esse outro lado e sente um conforto de pensar que não precisará de auto-flagelo repensando diariamente tudo que diz em suas contradições como se suas palavras tivessem de fato essa relevância. A dor da insegurança, da dúvida, do que não foi falado, do que deveria ser retratado, dos argumentos falaciosos de autoridade vão aos poucos sumindo. A sua fala impotente, prepotente a presenteia como a impotência da mudez. A falta da voz talvez faça a existência da pequenina ficar mais leve. Tenta se acalmar, ainda que com um turbilhão passando por sua cabaça naqueles poucos minutos em que está acordada, pós-descoberta. Tem consciência que sua perda é um sintoma histérico, mas que infelizmente sabe que pode ser tratado por Jesus, um psicanalista, ou quem sabe até na relação entre ela e sua cabeça. Vai até a janela, sua vizinha tem um passarinho que canta engaiolado, quer dizer pia, mas com um olhar desorientado enquanto pula entre dois pedacinhos de madeira sem parar, uma espécie de vigília despreocupada avisada. A menina não se comunica com o vigilante de asas, mas outros pássaros parecem fazer esta comunicação através do canto. Pensa sobre o que é a captura das falas dos bichos para suprir caprichos ou talvez carências dos seres humanos. Esta carência deve ficar clara dentro da perspectiva dos pássaros que também enxergam as pessoas através de suas grades, as pessoas do outro lado presas, sem canto. Ela está nua na janela, enquanto de cima dá a impressão de que cerca de três moradores de rua ficam a observá-la, ela não sai do lugar, mas se sente mal por pensar o corpo de uma forma despolitizada, depois ri e dá de ombros porque não tem voz e, portanto nada de crucifixo, vai continuar da janela nua, se comunicando com o corpo nu, cheio de voz, barulhos e sinais, na busca da compreensão dos seres humanos vizinhos que se apropriam da rua e quem sabe por isso, por estarem fora da gaiola, tem corpo e voz invisíveis. É como se o grupo e a menina estivessem fazendo um jogo poético de invisibilidade pela janela. Ela volta pra sala, são muitos sons naturalizados fora de casa que invadem o espaço e parecem embolar sua garganta, tem vontade de vomitar um mundo que perpassa pelo seu corpo, um mundo que é intencionalmente barulhento para não escutar o calado. Está ansiosa para saber como vai ser o seu dia de muda, desce do seu apartamento e dá bom dia ao porteiro.

Maria Carolina Abreu, 12/11/2014

2 comentários:

  1. Se eu bem entendi, o texto trata das pessoas que não tem voz na sociedade. A protagonista, no caso, é uma mulher, que, ao se ver sem voz, usa outras formas para comunicar suas ideias, como tirar a roupa e exibir publicamente seu corpo nu. O texto trata da mulher, mas poderia muito bem representar outras minorias. Achei interessante.

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    1. Oi Riku. Fico feliz com seu comentário, nesses dias corridos do cotidiano da gente, os textos voam e mal se tem tempo para se trocar sobre eles. Para mim o maior sabor da escrita é esse, receber de volta as múltiplas interpretações que virão sobre os mesmos. Esse texto eu escrevi de uma forma muito ansiosa sem aguardar o tempo de um possível amadurecimento e aprofundamento da personagem. A proposta inicial era trabalhar a relação da personagem com o mundo diante da mudez. Depois disso, não havia nenhuma estrutura do texto pré-estabelecida/pré-pensada, as reflexões que você traz adiante, foram construções da própria personagem. A nudez, por exemplo, é mais acaso do que proposição tanto da personagem quanto da escritora, dentro de acasos que foi construída a história . Suas contribuições são muito boas e acho que dialogam bastante com o que tentei trazer e afinal: quem é que tem voz nessa sociedade? Muito obrigada e senta-se convidado a ler e se sentir bem trocar sobre os demais textos também!!

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