quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Bolhas de água sem ar.

Bolhas de água sem ar.



   Sofria de uma sede insaciável, que dava falta de ar, como um corpo sem ventilador.Pela janela observava uma mala em cima do teto do ponto de (ônibus) em movimento, o aperto da mala em sintonia com a liberdade da queda. Se a mala tivesse aberta conseguiria respirar? De noite se revira na cama na busca de uma posição que lhe deixe respirar, em um contorcionismo de suplicio para que o invisível lhe toque o corpo, na possibilidade de se acalmar.
   Nascer humano traz a falta e um sistema nervoso. Por essa condição de humano, pressupõe-se castração. Educam o amor, que naturaliza-se. Em algum momento sua fragilidade já virou agressão? Se procura no espelho, e narciso, talvez não fosse idolatração, mas busca. Ninguém que se não o outro é capaz de vê-lo, no sentido de sua integralidade de sentidos. Essa talvez seja a maior perversidade -(HUMANA), humana,no sentido romântico da palavra. Se  pudesse sair de si e se ver, liberta de si, encontraria ar?
   Vai a praia, tentar matar a sede, se aventura nas ondas e leva uma sequência de caldo,  a experiência traz um monte de sensações confusas,  o cabelo que embola em seu rosto parece compactuar com aquela água marrom agressiva que que invade os buracos de seu corpo em busca de acabar com seu ar. Teria encontrado o ar agora? A convivência com sua existência é quando nos falta?
   Se afastando daquele turbilhão de movimentos da água. Boiou e saiu com fraqueza do mar. Passado o susto, recordou-se do seu filtro com a água que não mata sua sede.  Se sentia como  o copo, que dizer, como a bolha do copo da água que faz movimentos bruscos, ainda que aparentemente singelos, descendo e subindo eufóricos e sufocados, que quando chegam a superfície viram hegemonia da substância. Seu corpo tocara finalmente o invisível?
   Então  indagou um absurdo: Será que já  houve alguma pessoa, apenas uma no mundo, que ao levar um caldo, tenha sentido um minuto de prazer? Em cima do ponto de ônibus tem uma mala fechada, embaixo, uma pessoa que não respira.


Maria Carolina Abreu, 25/09/2014

domingo, 21 de setembro de 2014

Xeque mate literário










Xeque mate literário

    Agora ele inventara de jogar xadrez. Não haveria de existir ideia pior, já que se trata de um jogo tão traiçoeiro  quanto eu. Eu não lido bem com jogos em geral. Minha mente libera substâncias que me fazem ter nó de perversidade na garganta e exalar um odor que fede  a superioridade. Se seus olhos enxergam jogadas, mas são cegos ao meu desequilíbrio, terá que lidar com as consequências. As casas igualmente pintadas e distribuídas não significam nunca harmonia, nem sequer igualdade.
    Saio de casa, já que no jogo, com a minha mente lenta, não consigo expressar o meu desejo de massacre em revanches. Trabalho o jogo, ridicularizado por mim como entediante, em revide ao outro  extremo da monotonia, com a excitação do meu corpo com outros adversários.  
  Marco com um amigo. Conversamos com palavras mecânicas, como as jogadas para avançar; o lado oposto nunca é despretensioso e isso me traz um ódio por fragilidade. Ele me convida para sua casa, ao chegar, entramos no tabuleiro e iniciamos os movimentos. Ele começa o jogo e é profundamente previsível quando  segura a minha cabeça e começa a passar sua língua pelo meu pescoço; o peão anda duas casas. Eu o afasto de maneira dengosa, encostando a cabeça no ombro, em uma simulação real de um arrepio que percorre o meu corpo; o peão anda uma casa da ultima fileira do lado esquerdo,em combinação de timidez e astúcia,  que prepara o espaço da presa de forma silenciosa. Suas mãos tendenciosas em movimentos rápidos começam a arrancar a minha roupa enquanto sua boca se aproxima de minha barriga; bispo se alinha com o peão. Eu nua dou um passo para trás até encostar a parte de trás das minhas cochas na cama; avança o peão uma  casa do outro lado, na ultima fileira, como observador, que envolta quem se aproxima. Sou empurrada pra cama e ele se posiciona por cima de mim, em uma previsibilidade patética de avanço voraz, como se em algum dia isso houvesse representado qualquer tipo de ameça para quem ri cinicamente por baixo; rainha anda duas casa e para na frente da casa inicial do bispo. Eu, como disse anteriormente, estou rindo de forma debochada; avanço com  qualquer pião. Acontece a penetração; Xeque com a rainha. Eu a como com meu rei, com uma vontade, mas tanta vontade, que seu bispo não demora nada a chegar, que faz com que ironicamente  seu corpo termine mole, fraco.
  Eu venço os jogos de forma invisível e cruel, em uma auto destruição de uma auto impotência esticada ao rei que goza de um ataque a parte humana da cabeça do adversário que falha quando se concentra na estratégia.
   Chego em casa de noite, beijo o meu namorado, pergunto como foi o dia, e ainda úmida entre as pernas, exalando um odor que fede a poder, de jogo ganho, o convido para mais uma partida de xadrez.
Ele tem um jogo, eu tenho um corpo.


Maria Carolina Abreu, 21/09/2014

sábado, 13 de setembro de 2014

Aguçando os sentidos para acabar com o método

Bem vindos ao meu quintal. Essa poesia desformada me faz carinho. Bom devaneio.





Aguçando os sentidos para acabar com o método

Deve demorar uma vida para se formar, cursa poesia. Divide com a solidão para dobrar a impossibilidade do ócio. Ao se olhar nua no espelho, só enxerga traços disformes. Tem dúvidas de sua existência. É feita da lentidão do bater das asas de algumas garças na escolha de um galho. Seu corpo acaricia os insetos, que nele resolvem explorar. Seu abraço assemelha-se o agarrar das abelhas nas flores, trepado, como de corpo inteiro. Pela noite, empresta seus ouvidos às angustias dos mosquitos que zumbem em seu entorno. Para se esquentar enrosca-se no cochicho do mar. A dança é inspirada nas pontas das folhas do coqueiro. E em raridade, quando sem preguiça deseja pensar, faz como os pássaros que brincam nos varais e se dependura de cabeça pra baixo. Tem brigas terríveis com o tempo, para afirmar sua ambiguidade, de ser metade casulo, metade borboleta. Tem gosto de vida em banho marasmo, como um cochilo na rede.
A começar pelo existir, começou a entendê-lo enquanto admirava um homem que pescava em cima do telhado do barco, o distante entrava em seu olhar. O diálogo com o silêncio lhe ensinou escuta. Movimentar-se o corpo, observando o balanço das árvores finas. O sexo, com as pequenas marolas do rio, que se atravessam de todos os jeitos e direções. Sem asas, com as aves, descobriu que pode voar. Por vezes, põe dedos e objetos frente aos olhos, assim garante as imagens. O ver vem com os sentires.
Encontra o amor no sabor do cheiro das ervas viradas fumaça, quando se tornam chá. Na delicadeza dos grãos de areia, escondidos nas dobrinhas das conchas curvadas, amedrontados pela imensidão do mar. No russo dos corpos das crianças sujas, imundas, que provam assim, sua ultima aventura e logo depois fogem do banho como mais uma de suas brincadeiras.
Descomprrende o mundo como uma criança, às vezes corre até o desequilíbrio, brinca de mistério, procura funções na fuga do risco do tédio, enjoa rápido, faz por distração e tá sempre caindo. Em tempos de obrigação empaca, injuria-se. Encara a vida, como uma peça de teatro, se não há critérios para ser gente, além da cara, que sejam todos personagens e o resto cena. Assim pode-se viver e sorrir.
Sofre feliz juntos as miudezas, as tardes laranjas introspectivas. O vai e não-vem da lagoa, que passa despercebido aos distraídos. As estrelas mais apagadas, quase imperceptíveis no céu. As pernas zebriadas das aranhas. O carinho do fim da tarde, feito pelos raios de sol. Dispensa os excessos para ir de encontro à invisibilidade da beleza.
Que é o amor senão a simplificação da vida?

Maria Carolina Abreu, 22 de fevereiro de 2014.


quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Vocês hão Eu ar

O que é antipoesia? “Um tapa na cara do presidente da sociedade de Escritores” 
O que é um antipoeta? “Um sacerdote que não crê em nada”, “um bailarino à beira do abismo”, “um vagabundo que ri de tudo, até da velhice e da morte”.

 (Nicanor Parra)






Como narrei na primeira postagem deste blog, na "apresentação", quando eu era pequena escrevia. Escrevia poesias. De repente quando ninguém esperava, eu pegava papel, caneta ia pro canto e voltava com uma surpresa. Talvez fosse uma forma de expressar o silêncio, onde as pessoas não entendiam suas palavras. Cheguei até ter grande entusiasmo para publicar um livro, ganhei um concurso de poesia na escola, com uma poesia profundalindamente piegas...mas não sei quando ou porque, em algum momento acabou... Os anos se passaram e mais uma vez precisava me expressar com o corpo dentro das palavras. Resultou nos escritos que vocês vêem acompanhando. Mas nunca poesia, pelo menos aquela que se parece poesia. E hoje aconteceu algo inesperado, como a surpresa de minhas poesias quando pequena, na diversão de brincar com as palavras, foi saindo algo parecido com o que é nomeado: poesia! 
Ela seria introduzida a partir de algum personagem de um próximo conto, o que tinha como principal objetivo passar a responsabilidade da tolice que escrevi para terceiros. Mas meus personagens tem lá sua personalidade e seus limites comigo, foram duros e não admitiriam tal absurdo.
Eles tem razão, que eu arque com a responsabilidade. Divido com vocês um dia importante em minha breve história de escritora fracassada. Se for possível, bom poesiAR!


Vocês hão Eu ar.

Deus os livra
Eu LIVRO
Vocês creem
Eu CRIO
Vocês céu
Eu PÁSSARO
Vocês penam
Eu PENA
Vocês Sacrifício
Eu ício
Eu ÓCIO
Vocês foram
Eu VÃO
Vocês remédio
Eu MANIPULAÇÃO
Eu POESIA
Vocês punição.


Maria Carolina Abreu, confuso dia 11/09/2015


quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Derivo-diversões







     Espero que os leitores não se sintam ofendidos... Esse conto foi publicado já a bastante tempo e hoje o resgato para compartilhar com vocês! A foto acima foi eu mesma que tirei quando fui a Espanha e por coincidência me lembrei dela quando reli meu texto. 

     O escrito é bem despretensioso, narra mais um processo de reconhecimento de si (da personagem) e indagação em relação as suas crenças do que o ensaio de uma crítica. É texto afundado em descoberta, propositalmente solto e bobo.
    Mas em momentos de "retrocesso" é muito importante lembrar o papel profundamente conservador que muitas instituições igrejas cumprem. Quando os dogmas infundados da igreja passam a interferir no Estado, na politica, em nossos corpos, não há como silenciar!
     Lamento profundamente pela recente notícia da moça que está desparecida após fazer um aborto clandestino, ela é só mais uma de milhares que morrem por não terem acesso ao aborto legal das mulheres ricas. Lamento que casos tão graves, de agressão cotidiana ao corpo das mulheres, sejam tratados como caso de igreja ao invés de ser caso de saúde pública.
Que droga de defesa da vida é essa?
Deixo com vocês a possibilidade de troca e reflexão.




Derivo-diversões


  Acorda, prefere descer de escadas a suportar a ansiedade da espera dentro do elevador. Gosta do tempo, quando é possível observá-lo, invisibilidade a enlouquece. Possivelmente esse seja um fator decisivo em sua recente decisão de abandonar  a igreja.  Dá sinal ao ônibus, enquanto no caminho, tem o prazer de se esquecer, olhando qualquer coisa. O prefere sempre, pois além dos devaneios com as modas, sente uma inquietude esquisita com o que tá de baixo dos pés e acima da cabeça. Só compreende o que tá dentro do limite do tamanho que seu corpo pode alcançar, assim largou a crença em qualquer ser, onde não possa estar, quando de corpo em chão.
  Pega o livro, mas tem dificuldade de lê-lo. Vive engasgando com a angustia de terminá-lo, mas prefere a distração do mundo aberto. Ela não sabe se é bem uma escolha, não a importa. Reconstrói o conhecer, de forma a fazer sentido e a não deixá-la entediada. Ri com a nova palavra que aprendeu, se chama: perseverança. Aprende rápido, pois o significado é o oposto de tudo que ela mesmo é. Guarda o livro na mochila. Com a nova descoberta brinca de montar e gesticulando com a boca, diz em voz alta, as derivo-diversões: Serve, revese, espere, esperança, avança, peça, pança. Olha para a barriga e continua a brincar com sua imaginação sem limites, em uma graça infantil, beirando ao patético.
  Gosta dos sucessos dos intelectuais, pois ainda que dispense fetiches,  ao mesmo, os ama, se auto desafia a torna-los praticáveis, jogo criado, cujo  principal objetivo, é simplesmente se opor aos admiradores que suspiram o idealizável dos versos belos e no cotidianar os cospe. Só admite palavras, quando  viram vida. Utilizava o mesmo método ao encarar a bíblia, tornava-a literável, como um livro de poesia, que demanda difíceis interpretações à serem transpostas ao real.
  Precisa rapidamente encontrar um sentido para sua vida, agora que abandonara a religião institucional, mesmo, que secretamente guarde uma fé fervorosa. Acredita em todas as histórias da vó, cura com planta, tempo com bicho, boca do sapo, cabelo com lua ou maré, acredita em reza, pedido e pensamento. Se sente mais livre, ainda que carregue os vícios do inexplicável.  Contraditoriamente é um aconchego materializado em  forma criativa e palpável. Enxerga aí, a diferença entre o sabor das histórias reinventadas que estão à anos em banho Maria na diversidade dos saberes e os dogmas, que mais se parecem com os enlatados, intragáveis, mas aparentemente belos.
  Vai a fundo na reflexão sobre sua existência. Mas acha um saco precisar de um motivo pra viver. Para além de sua existência, somente quer existir. Descobre com isso, indo a outro extremo que tem intensa repulsa pela obrigação da vida e a sua exaltação. Se precisa de um propósito no mundo, tá decidida que será defensora dos suicidas. Como boa feticheira, cria logo o slogan: "Pelo direito de liberdade à morte". Se espanta, ao perceber como ironiza o intocável e não se sente mal. Descobre o prazer.
  Sente um momento feliz, a vontade de incendiar  igrejas passa, pois ao se descobrir, entende que a dúvida tem mais potencial de iluminação que o fogo. Vai agora, ser alheia, vivendo. Desprezando fins, se detendo a alimentar uma constante incerteza.
Fins são determinantes, e ela, por natureza, uma cristã sem céu.


Maria Carolina Abreu, 21 de janeiro de 2014.



sábado, 6 de setembro de 2014

Trauma, pão doce e passarinho

Este conto é recente e inédito. Não foi nem publicado, nem possivelmente avaliado em concursos. Creio que o blog esteja sendo um mecanismo democrático tanto comigo quanto com os leitores, se dependesse de uma banca estaria no mínimo triste. A leitura de vocês me enche de inspiração.
Este escrito me traz algumas "associações" sem um traçado lógico. Inicialmente o conto me lembrou a pintura abaixo do Chagall, aliás de forma geral, suas pinturas sempre me vêem a cabeça. O circo, as pessoas voando, o violinista no telhado, de alguma forma me trazem uma confortante identificação. Talvez se tivesse que escrever algo sobre essa imagem, seria este conto. 
No mais me percorrem as ideias o Nelson e o Bergman com os mais brilhantes textos sobre os conflitos de casais, que excedem a "normatividade" e os clichês globais, indo a fundo nas inaparentes contradições das relações humanas.
Boa viagem...





Trauma, pão doce e passarinho

        Ela insistia em adjetivá-lo de imaturo. Aos vinte e oito era formada em enfermagem, enquanto ele com quatro a menos, cursava matemática. Moço pacato e observador desejava apenas formar uma família, e isso se dava talvez pelo trauma com sua própria, ou apenas pelas características de sua personalidade. Interessado em psicologia, acreditava ter trabalhado ao longo de sua vida sua frustração familiar, a fim de tratar suas fraquezas, sem fugir a transparência. Mas ainda sim, volta e meia, dava longos suspiros, meio perdido, meio confuso, se todas as buscas por argumentações, não eram simplesmente uma forma de se expor, para se confortar a legitimar seu destino que já havia traçado.
  Já a moça, se opunha bastante ao rapaz. Talvez por seu jeito inconstante ou apenas pelo saboreio da oposição. Entediava-se rápido, tinha fome de mundo e rejeitava o roteiro da vida. Sua rebeldia era posta em dúvida por uma série de dependências emocionais. Vivia meio dolorida, com ombros rígidos e pescoço duro por carregar suas angústias.
  Ele tinha muito de menino, enxergava o mundo com os questionamentos de  quando se é criança, e a moral permeava sua  vida de forma avessada. Por isso, volta e meia, recebia duras críticas sobre sua displicência para com os outros. Não era muito de cobranças, nem de excessos de carinhos, talvez por ausência de afeto durante a infância, talvez por não encontrar sentido em toques afogados em romantismo. Ainda sim contraditoriamente, demandava atenção. Quando estavam na casa dela, o que com o passar do tempo foi se tornando uma rotina, nunca a deixava longe ou que dormisse durante as tardes, ainda que ficasse a maior parte do tempo longe e introspectivo, o ato indiferente da inconsciência de olhos fechados, o fazia se sentir só.
  Ela gostava desta atmosfera de mistério e observação, mas se sufocava. Quanto mais sucinta atitude de domínio, mais ar lhe faltava. Sentava-se ao lado dele e abria um livro para refrescar a mente. Tinham longos momentos de silêncio. Silencio de decifre, não de embaraço. Olhavam-se nos olhos, e diferente do que se vê, o silêncio era preenchimento do vazio. 
Durante o sexo, ele era bastante atencioso, excesso de sensibilidade ou talvez de desinteresse. Não importava para ele. O relaxamento muscular conseguia sozinho com as mãos, queria sempre garantir o poder de seu próprio prazer. Ela, desde nova se lambuzava com o sexo, não sabia se estava ligado ao fetiche ou ao prazer. Com seus acompanhantes, incitava-os a chegar ao auge de sua potencia, em silêncio, tinha sempre uma sensação de morte, um estranho prazer na subalternidade que não admitia em seu cotidiano. 
  Talvez se encontrassem nos devaneios dos hábitos... Ela, pequenina amava pão doce e sempre o comia puro, um dia resolveu experimentar com manteiga e surpreendentemente teve um prazer indescritível. Continuou a comer pão doce puro. Não queria perder a primeira sensação. Raramente quando o fazia, sentindo a mistura do sal com o doce, reencontrava o sabor da primeira vez. Pensava se todo prazer passa pela privação ou se o encontramos na banalidade. O sexo dos dois era banal, havia prazer, mas nunca teve gosto de descoberta.
  Namoravam a um ano, muito rápido, muito intenso, traçando um caminhando de encontro direto ao fracasso, pelo menos era desta forma que ele pensava. Dizia que a rotina cansa e que as diferenças se intensificam, se quisessem uma relação duradoura deveriam prolongar o tempo em distancia. Ela pensava completamente ao contrário, não fazia sentido um Fordismo do amor, tinha medo que o sentimento não mais existisse nesta distante projeção pautada em riscos. Talvez por orgulho em afirmar a sabedoria de sua teoria ou apenas por submissão a fim de suprir seu suposto trauma entrou em acordo com sua proposta. Em breve morariam em sua casa.
  Eis que aparece uma discussão central. As formalidades da moral, com a qual os dois viviam em constantes e distintos conflitos. Como doía para ambos, se imaginarem entrando naquela construção com cruz ao alto, divindade e batina. Para ele o casamento só era importante enquanto autoafirmação, dispensava as formalidades. Gostava da estética, que sempre admirou, devido a sua grande percepção observativa, mas a tensão de olhares a sua volta, juramento e  aprovação, deixavam-no a soluços inverbalizáveis. 
  Preocupava-se muito com sua imagem ou em estratégia para apagá-la ao máximo. Em situações simples de exposição, tinha crises de pânico. Certa vez, entrou no metro e quase caiu, tentava se equilibrar evitando encostar nas pessoas que ficavam apaticamente imóveis, como as baratas sonsas, capazes de passar um dia inteiro no mesmo lugar, como se estivessem mortas. Após o frear do trem, seu balanço inesperado acarretou olhares ferozes e maldosos, que pareciam rir com as rugas do canto do olho. Após o ocorrido se esquivou dos corpos até chegar a porta, desceria na próxima estação, quando se deu conta que estava do lado errado. Não suportaria atravessar meio metro de olhares, desceu uma estação anterior, e durante seu trajeto que duraria cerca de quarenta minutos, lagrimas silenciosas correram seus olhos imperceptíveis a qualquer olhar. 
  Já a moça, apesar de concordar com o namorado sobre o belo caráter estético, afinal, meninas crescem com seu imaginário de fantasias preparadas a espera do grande dia e ela não era uma exceção a regra. Estava certa, que jamais repetiria agressões deste tipo a si mesma. Entrar de branco na Igreja lhe parecia uma ridicularização de si e de um ímem já rompido. Em pecado, depois de adulta zombava da Maria ou dos que exaltavam seu "manto". Por sua formação, ou por questões obvias sabia da impossibilidade da virgindade da Santa. 
  Vinda de família católica o mundo de castidade lhe deixava tonta, era incompreensível. Quando criança, ao chão, no canto de seu quarto, experimentou se tocar, quando os olhos da mãe cruzaram o movimento da mão da menina, ela recebeu uma surra memorável. Em efeito inverso, a menina só tinha mais vontade de se conhecer e de se mostrar, o que não era nada fácil em meio a tantas rezas com peregrinação direta ao inferno para  infratores como ela. Sentia-se tão desorientada, que assim que perdeu a virgindade aos quinze, correu até a casa e pegou uma faca. Em seguida a deixou cair sobre o chão. Pensou que se se cortasse, pudesse as impurezas de seu corpo evaporar, mas faltou-lhe coragem. Afastou-se de tais ideias, em proporção ao seu apego rebelde ao sexo.
  Pois bem, estavam decididos, casariam-se apenas no papel. Ela ficou responsável de ir até o cartório buscar informações para a formalização. Se deparou com uma mulher que em abstração enxergou de tal forma: um nariz arrebitado por uma superficialidade elevada. Unhas pintadas para cobrir seus vazios abertos pela cutícula e os efeitos do tempo burocrático eram explicitamente perceptíveis, com roupa e maquiagem em uma aparente fuga ineficaz da gravidade, como fazem as crianças, testando-a a todo tempo. Imóvel, ficou pensando se a senhora não se sentia degradada diante do espelho e temia uma possível semelhança com aquele ser depois de uns anos. Se sentiu má por pensar aquilo.
  Por um momento não sabia o que fazia ali, diante de tal figura inexplicavelmente ameaçadora. Era como se as pernas tivessem levado seu corpo inconsciente, mecanicamente em encontro daquele lugar horrível. Com a boca seca de sufoco, atravessou como ventania a porta e foi a beira do valão do outro lado da rua, perder-se os olhos ao longe, observando as mutações das nuvens, com as colorações do céu. Parte de seu tempo avesso à necessidade da realidade era dedicado as formas que via quando olhava pra cima, assim se confortava, na possibilidade simples de não ser, a mobilidade da neblina no céu a livrava da vida de concreto e naquele momento era o que a acalmava.
Decidi ir até ao parque para pensar suas escolhas tortas. Tinha como de costume esses passeios pelo menos uma vez por semana, brincava de tentativa de interação com a natureza. Quando passava o vento, soprava forte, assim sentia que o calor fugido de sua boca, acarinhava as pessoas, com seus remelexos de calafrio. Agora, diferente de sempre, está triste, avista o portão e corre até de baixo da arvore, deita-se na grama, como uma criança. Desajeitada, de pernas e braços abertos, com indiferença as penicações que correm ao corpo. Imune a tudo que não é si. 
  Admira uma folha, que se distingue do todo, se sente a folha,  afinal todos buscam o destaque pela diferença. Sem saber se dorme com os olhos abertos ou entra em um transe real, se transforma no vegetal. Ela se desprende do galho, ainda com seus sentidos de gente aguçados... "Ah, mas quanto egoísmo. Tamanha ousadia me desgarrar assim do grupo.Vou cair  no chão e ser pisoteada. Que ideia estúpida, agora vou sumir só...No caminho se sente diferente: Que sensação única, o prazer do rodopio, o balançado de forma distinta. Valeu a pena ainda que agora eu esteja de baixo da terra. Saboreio minha corrosão em tempo que por direito é individualmente meu. 
Depois da alucinação, compreende que precisa repensar o casamento. Para o Estado seu corpo é um número, seu casamento será mais um dado. Estava pobre de vida. Vai para casa, onde combina com o namorado de encontrar-se. Ele já está lá, estendido na cama quando ela chega, com um ar inerte, mas que talvez seja pensado para esconder a ansiedade. Ela, fica feliz com seu semblante, assim é mais fácil. Eles sabem que se entendem e que sentem bem juntos, e isso é suficiente, e isso é perceptível no silêncio. O amor, o amor nunca fez sentido para nenhum, nem outro, pois não sabiam o que significava. Mas essa coisa de roteiro da vida definitivamente não era pra ela. A folha precisava da experiência de voo, sem pouso certo. Decisões são tomadas por impulsos racionais. Ela dá a noticia, quer terminar tudo.
  Imediatamente, sem buscar diálogo, ele sai e vai embora. Em completo descontrole, as lágrimas caminham pela boca, pescoço até chegar ao peito. Sustentações são perigosas, principalmente quando elas não são nossas próprias pernas. A queda é certa, encontra concreto, não passa do chão e dói um bocado. Ele vai pra casa com muita dor.
No outro dia ela acorda e vai lavar roupa com o corpo mais leve que de costume. O cheiro de imperfeição está nas roupas lavadas no tanque, e, sobretudo o que é imperfeito nos traz formas desencaixotadas de refletir, pensa isso enquanto esfrega as camisas. Lembra-se então do ditado popular do passarinho. “Passarinho que acompanha morcego acorda de cabeça pra baixo”. Que sorte do passarinho, poder acordar com um outro ponto de vista.  
           Sente vontade de fumar um cigarro, ainda que tenha feito poucas vezes na vida, sabe que a brincadeira é perigosa, por sua formação ou por questões obvias. Talvez exatamente por isso esteja com vontade de acender um, precisa sentir o corpo vivo, mas a sensação não vem. Se olha no espelho e ele está completamente limpo, em geral quem tem espelho limpo,  escova mal os dentes. Sente-se suja em cada pequeno buraco de seu corpo como em seu primeiro sexo, a sensação primeira, como aquela do pão doce.
           Liga para sua melhor amiga, as paredes bem pintadas a enlouquecerão a qualquer momento. Se encontram, mas não consegue concentrar-se em conversa alguma, seus pensamento estão voltados para ele. O complexo de mulher medíocre chega a sua cabeça. Na sua frente uma mosca em círculos, agoniza dançante e traduz exatamente o que ela está sentindo.
            Se dá conta de que seus pés também não estavam no chão, e sua sustentação é frágil. Onde se encontrava o apoio durante todo aquele tempo? Provavelmente, ele responderia prontamente com seus conhecimentos de "psico-traumas", Segundo Freud: "Cristovão carregava Cristo, Cristo carregava o mundo inteiro; onde, então, Cristóvão apoiava o pé?"... Passa uma semana e ela vai procurá-lo. Ele não está. A mãe informa que em seguida que eles terminaram, ele fez as malas e viajou.
            Ela vai para casa, acende um cigarro, se dependura no parapeito da janela, e sente uma espécie de formigamento que lhe corre todo o corpo amolecendo-o de descontrole até cair, direto para cama. Amanhã é outro dia. Ela é jovem, passa rápido. Em breve descobrirá que não há caminho para a liberdade. A liberdade é a própria contradição.
  Já ele, estava tão mal, com seus planos destruídos, tão sem rumo e cheio de uma mobilidade não escolhida, que concluiu que a única forma de parar se sofrer, era deixar de viver. Optou pelo sofrimento, fez a mochila e foi viver os planos de liberdade da ex-namorada, talvez pelos últimos traumas ou talvez só por uma mudança de personalidade. 
  Para chegar a rodoviária foi de metrô. Do outro lado, observava a porta oposta se abrir, o que acarretava rotineiramente uma briga voraz, sem parâmetros morais em busca de um banco. A porta abriu, a correria começou, ele esperou que todos entrassem, depois foi até o meio do metrô com as bochechas elevadas de riso formando rugas perversas nos cantos dos olhos, e de corpo inteiro sarcástico, cruzou olhar com cada uma daquelas pessoas. Aquela cena nada mais era que a representação do humano, da perversidade escancarada. É que as pessoas fazem tão pouco sentido quanto o amor.