Uma jovem qualquer.
Uma repulsa que passava pelo arrepio que poucos corpos sentem.
Ânsia de calafrio, vômito de inércia, ansiedade na ponta dos dedos, consciência
corporal que só existe nas sensações que não compreendemos. E um grito de dor arranhando as cordas vocais,
que no estômago habita como raiva e causa aflição.
Certa vez, uma jovem
mulher passou pela minha vida, e desapareceu logo depois, era uma jovem
qualquer. Essa jovem tinha formigamento só em viver, ou a vida se assustava e
tendo que habitá-la se sentia confusa. A
marginalidade dos sentidos que se calam com a boca e dizem coisas com o suor. E
como ela soa, soa sozinha, nos cantos que se encontra na discrição ela soa, e
sorri, como um desaforo sem pretensão, mas com doses de provocação.
No céu tem uma lua, a
dança das pipas, uns pássaros, uns desenhos e lá estava ela. Aquela silhueta na
rua, como se fizesse parte daquele cenário, de pés no chão caminhava descalça
sobre o asfalto, quente, cinza, duro, sem uma púnica flor, embora parecesse flutuar
e transformar o que é árido, em uma imagem leve, mas muito excitante por ser ao
mesmo tempo muito selvagem.
Nessa infinitude, a vida se torna o limite entre o tudo e o
nada, o tempo inteiro, em cada minuto do ponteiro grande que não se sabe se
está funcionando. É ao mesmo tempo a melhor a pior coisa que não se pode
possuir.
Observo seus olhos, porque não sou capaz de chegar ao seu
olhar. São olhos são tristes, mortos, distantes, mas profundamente belos, como
se pudesse olhar sempre algo mais do que
o resto das pessoas, um pequeno detalhe, um pequeno nada do dia a dia, como se
qualquer coisa os despertasse, mas nada chegasse até suas vistas, algo intenso,
mas em um lugar paralelo.
Um olhar que atrai
sem perceber outros olhares enquanto olha pra si, ou enquanto observa o vento e
os ocupa em sorrir para tudo que descobre na normalidade. Bastante assustador, o quanto se apaixona
pelo vazio, mais do que se apaixona por qualquer pessoa que a deseja, e isso
causa um estranhamento, mas que não soa como arrogância.
Ama aquilo que não existe, e é assim, as pessoas que se
aproximam dela não se conformam com um ser pode ser tão cheio de nada, embora
seja tempo todo muito, seja o que há de mais pueril e mais ventania, tudo ao
mesmo tempo, tudo se contrapondo e se completando, é coexistência demais para
aquelas cabeças.
Transferem seus traumas aquela figura tão fortemente frágil.
Entediam-se rápido, mas é claro, que ela não se liga, nem se preocupa, nem percebe,
apenas ama as pessoas, de uma forma quase catastrófica, e então começa a se
sentir sufocada.
Saí pelas ruas sem destino, tem às vezes a sensação que os
seus desenganos pelos lugares que percorre a completam mais do que qualquer
outra coisa em sua vida. Como se sua própria vida, já fosse o que é impossível
de se encontrar, como uma caminhada fadada a chegar a lugar nenhum.
Sua cabeça gira. Observa a sujeira da cidade. Sente que toda sujeira que existe, e que ela
não suporta olhar, e que martela durante dias na sua cabeça, é a tua própria
condição de existência nesse mundo. O asco é concreto na rejeição do corpo, mas
é na abstração, é vagando nas idéias, que ele a enjoa e a atordoa, até ela se
sentir como a própria sujeira a ponto de tocá-la, como se toca algo qualquer, e
só assim se sente liberta... nessas
horas volta a ser selvagem e desafiadora, ela se torna sua maior fonte de prazer,
é suja e ama ser ou estar assim.
Volta a ter certeza de que é capaz de amar de forma incondicional.
Mas logo em seguida, se depara com a realidade escancarada e se lembra que
precisa lidar com as pessoas. Pensa que a alma das pessoas é amável e desprezível
e por isso ela tem relações de dependência e um desejo visceral de estar só,
como precisasse se convencer de que se basta, embora talvez, se baste demais,
na verdade.
Sabe que a solidão no
fundo é aparência, é risada de desespero, como uma criança que dá uma
gargalhada forçada para fazer parte de algo em algum momento. É fuga de se
deparar consigo, é saber que é quebra da rotina, que é se desafiar, é
exercício, é ta sempre sentindo o fantasma do incômodo. É sobre não expor as fragilidades. Acredita que a vida é um palco, onde nunca
estamos preparados para as cortinas abertas, embora estejamos atuando a todo
momento, ela brinca de como a fantasia, que poderia ser algo lúdico, é também o
mais cru, é o que representa mais as pessoas, talvez a realidade, seja composta
por vidas, todas elas, de fantasia.
As pessoas são como os pássaros para ela, como se ela fosse a
semente que não os deixa morrer, mas que as vê voar. Ela está em todos os
lugares e em lugar algum, como algo fundamental, mas esquecível. Talvez essa
jovem e tão jovem, seja a coisa mais sutil produzida por nós, de carne e osso.
Gosta disso, pois ela é como o silêncio, que ninguém dá atenção, mas que
transforma a vida das pessoas, quando elas decidem escutar o que ele nos
sussurra.
Vagam nos seus pensamentos, que não são de fazer barulho, a
sujeira da cidade, pela qual se assemelha e se confunde pela falta de sentido
de ambas. Não há quem admita quanta perversidade e sujeira tem morada em um
cantinho nosso. Ela sabe e não esconde, é escandaloso como pode ser tão crua,
embora nos pensamentos, até se pareça com nós, com pessoas comuns.
Também não suporta os
seus próprios, essa coisa do prazer escondido no que há de mais obscuro e cruel
também a enlouquece, mesmo que se olhe pra ela, como se ela fosse a
materialidade de um delírio.
Esses pensamentos ficam guardados e escondidos a sete
chaves, vagam entre a repartição da repressão e da auto destruição que existe
na nossa cabeça, não é um lugar lá muito livre e também cheio de sofrimentos.
Contraditoriamente, é
por essa área ai, que ela percebe o quanto é amada, e se dá conta do quanto
isso é insuportável para si mesma e nessas horas fica um tempo sem aparecer. Aqueles
lugares velados berram e o tom machuca a todos fisicamente.
Fico sem ela. Ninguém
fala nada, porque a língua existe, e é a responsável por ninguém te descobrir
de forma invasiva. Ao menos isso. Porque
quantas vezes por dia somos invadidas na vida, nos sonhos, no corpo. Quantas vezes a porta desta invasão já está
aberta pra que possamos brincar de olhar o humano com vistas sonsas, de buscar
o desajeito, os erros, rindo do embrulho que dá na barriga do outro, enquanto
isso ao invés de ser prazer, se parece mais uma sensação de beliscões ou uma
cólica forte. Não sei se a origem da raiva está nas unhas ou na humanidade. Não é suportável pensar sem ela por perto. Ela
não vem, e na verdade, eu tenho dúvidas, se de fato ela no real exista, ou se
ela apenas se foi mesmo.
É uma jovem qualquer, sem lei, sem ética, sem rumo. Sua
imagem não aparece no reflexo do espelho. É como a vida, as solidão, as
confusões, ela é tudo e nada. Enquanto olhos fecham e adormecem depois de uma
gozada, ela goza com seus próprios olhos e não existe ninguém que a toque e
suporte algo assim. E assim, ela segue só, em uma diversão quase maliciosa, mas
sensível pelos que tem a sorte de traçar com ela.
Seus passos só conseguem seguir, se estiverem pendurados no
abismo, eles deixam marcas, invisíveis, mas que é possível sentir por onde
passou. É a vida no limite. Ela é toda preenchida por muitos vazios e um deles,
é o meu que segue com ela, embora ela, só siga. Talvez ela precise ainda passar
por muitos pássaros, onde ao mesmo tempo em que ela é o próprio alimento, os
deixa voar. Admira o voo, sente as vezes, uma leve nostalgia como uma rápida
brisa que os faz bater asas. Ela não deseja libertar ninguém.
É abrigo sem ser gaiola. Enquanto eu estou aqui, neste exato
momento, completamente apaixonada por ela, me sinto capaz de odiá-la.
É apenas
uma jovem qualquer.