domingo, 17 de dezembro de 2017

A felicidade é azul e tem 50 anos.

A felicidade é azul e tem 50 anos.


Eu não tenho muitos amigos na casa dos 50, nunca imaginei ser bem aceita nesse círculo de pessoas tão vividas, com tantas histórias para contar, embora adore escutar histórias. Mas tenho uma amiga especial com essa idade. Ela odeia e eu que não ligava, de tanto ela odiar passei até achar charmoso. Cinqüenta é tão redondo, por isso ela deve odiar, embora não seja redonda. Ela me diz que é porque ainda não cheguei lá. Eu faço cara feia, debocho e retruco. Mas cedo na cozinha quando estávamos com uma amiga mais nova, elas conversavam sobre cabelos brancos e eu vou logo dizendo que não ligo, então elas dizem de novo: “é porque você não tem”. Eu faço cara feia, debocho e retruco e respondo: “mas quando vocês tinham minha idade ligavam para coisas que eu não ligo.” e elas concordaram. Ah, esqueci de dizer que eu ainda não cheguei aos trinta e tento provar que isso não importa, a não ser quando o tempo diz que eu tenho que ser tudo que eu ainda não sou ou não quero ser.Em casa, ela cozinha e eu escrevo, como se juntas fossemos aprendizes de Cora.  Escrevo tomando o café que ela passou e brinco que é uma combinação para entrar no clima de sua idade. Ela fica brava, mesmo nossas idades sendo invertidas. Ela diz que eu amo a inércia, enquanto ela não para um minuto. Ela quer tudo da maneira mais concreta possível e eu quero um tempo que nem existe. Hoje, enquanto jogávamos conversa ao vento, ela foi insuperável. Conversávamos e ela disse que agora só topa um relacionamento com alguém que beije bem, que invista no beijo. Rimos muito. Aos 50, o que se quer, é um bom beijo. Ela diz que os homens e mulheres que passaram por mais tempo em sua vida beijavam muito mal. Nós temos percepções de mundo muito diferentes. Minha amiga tem um sorriso malicioso de canto de boca, eu um sorriso sem graça. Minha amiga é sexual, vibra, tem olhos atentos o tempo inteiro. Tudo é material para ela, se importa com o seu e o corpo do outro, repara em detalhes, se importa com os cheiros e classifica beijos. Eu sou do campo oposto, nada é ruim ou bom, é o encantamento pelo outro que vai construir as coisas, então os beijos são inclassificáveis e qualquer detalhe imperceptível, o corpo não existe como corpo, existe como gente. Temos sedes de viver radicalmente diferentes. Ela me diz que odeia os 50, porque os olhos que tem meu tempo de vida, já não mais repousam sobre ela. Os olhos com meus anos de vida juram com boca e corpo que a observam. Mas tem coisa que é da nossa cabeça mesmo, não importa a idade das bocas que falam ou que as beije. Nesse mundo machista, ela diz que toda essa questão é mais simples para os homens, e eu concordo e discordo, acho e não acho, porque é e não é. Tem gente em volta que diz que na nossa forma somos muito parecidas, há quem jure que não há semelhança , eu acho que é um encontro que se equilibra no desequilíbrio. Minha amiga tem carta, lembrança, tem tudo preparado, é uma maré de sentimentos intensos, impecável pensando no outro. Enquanto eu sou uma maré de desastres e de avoamentos. Sempre que conversamos sobre nossas relações é um papo mais ou menos assim: ela diz: “-mas você nunca sentiu isso na vida?” e eu respondo: “-óbvio que não”. E as vezes eu escuto suas histórias, outras não tenho paciência, porque é um histórico enorme e as vezes ela com aquele sorriso maledicente ri e não conta nada. Essa amiga me ensinou, que eu posso até ser bem aceita nos círculos das pessoas que chegaram na casa dos 50, ela não se convence que o inverso pode acontecer. Ela sofre e diz pra eu aproveitar a juventude, eu rio e digo que tempo não tem nada a ver com sentir. Ela me manda pra rua, enquanto eu repouso em mim. Mas tem alguma coisa que nos fez tão amigas, algo em comum. Acho que é a nossa idéia comum de que assuntamos as pessoas, ainda que de maneira distinta, nós atravessamos os encontros que temos pela vida. Minha amiga tem 50, mas o prazer de uma rede, um papel, e um café são meus. Ela pulsa pra fora, eu pulso pra dentro. Ela é enorme, eu pequenina. Tenho a sensação de que ela pode coordenar multidões, enquanto eu mal me coordeno. Ela é tão poderosa, que soa patética suas crises de tempo. Eu adoro que ela seja meu maior personagem. Adoro estar feliz, e felicidade é assim, azul e tem 50 anos, no fim de tarde, ela é laranja e perdeu o tempo no entardecer. 

Um comentário:

  1. Sempre é maravilhoso ler a extração dos fragmentos de sua alma na forma de textos.

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