quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Derivo-diversões







     Espero que os leitores não se sintam ofendidos... Esse conto foi publicado já a bastante tempo e hoje o resgato para compartilhar com vocês! A foto acima foi eu mesma que tirei quando fui a Espanha e por coincidência me lembrei dela quando reli meu texto. 

     O escrito é bem despretensioso, narra mais um processo de reconhecimento de si (da personagem) e indagação em relação as suas crenças do que o ensaio de uma crítica. É texto afundado em descoberta, propositalmente solto e bobo.
    Mas em momentos de "retrocesso" é muito importante lembrar o papel profundamente conservador que muitas instituições igrejas cumprem. Quando os dogmas infundados da igreja passam a interferir no Estado, na politica, em nossos corpos, não há como silenciar!
     Lamento profundamente pela recente notícia da moça que está desparecida após fazer um aborto clandestino, ela é só mais uma de milhares que morrem por não terem acesso ao aborto legal das mulheres ricas. Lamento que casos tão graves, de agressão cotidiana ao corpo das mulheres, sejam tratados como caso de igreja ao invés de ser caso de saúde pública.
Que droga de defesa da vida é essa?
Deixo com vocês a possibilidade de troca e reflexão.




Derivo-diversões


  Acorda, prefere descer de escadas a suportar a ansiedade da espera dentro do elevador. Gosta do tempo, quando é possível observá-lo, invisibilidade a enlouquece. Possivelmente esse seja um fator decisivo em sua recente decisão de abandonar  a igreja.  Dá sinal ao ônibus, enquanto no caminho, tem o prazer de se esquecer, olhando qualquer coisa. O prefere sempre, pois além dos devaneios com as modas, sente uma inquietude esquisita com o que tá de baixo dos pés e acima da cabeça. Só compreende o que tá dentro do limite do tamanho que seu corpo pode alcançar, assim largou a crença em qualquer ser, onde não possa estar, quando de corpo em chão.
  Pega o livro, mas tem dificuldade de lê-lo. Vive engasgando com a angustia de terminá-lo, mas prefere a distração do mundo aberto. Ela não sabe se é bem uma escolha, não a importa. Reconstrói o conhecer, de forma a fazer sentido e a não deixá-la entediada. Ri com a nova palavra que aprendeu, se chama: perseverança. Aprende rápido, pois o significado é o oposto de tudo que ela mesmo é. Guarda o livro na mochila. Com a nova descoberta brinca de montar e gesticulando com a boca, diz em voz alta, as derivo-diversões: Serve, revese, espere, esperança, avança, peça, pança. Olha para a barriga e continua a brincar com sua imaginação sem limites, em uma graça infantil, beirando ao patético.
  Gosta dos sucessos dos intelectuais, pois ainda que dispense fetiches,  ao mesmo, os ama, se auto desafia a torna-los praticáveis, jogo criado, cujo  principal objetivo, é simplesmente se opor aos admiradores que suspiram o idealizável dos versos belos e no cotidianar os cospe. Só admite palavras, quando  viram vida. Utilizava o mesmo método ao encarar a bíblia, tornava-a literável, como um livro de poesia, que demanda difíceis interpretações à serem transpostas ao real.
  Precisa rapidamente encontrar um sentido para sua vida, agora que abandonara a religião institucional, mesmo, que secretamente guarde uma fé fervorosa. Acredita em todas as histórias da vó, cura com planta, tempo com bicho, boca do sapo, cabelo com lua ou maré, acredita em reza, pedido e pensamento. Se sente mais livre, ainda que carregue os vícios do inexplicável.  Contraditoriamente é um aconchego materializado em  forma criativa e palpável. Enxerga aí, a diferença entre o sabor das histórias reinventadas que estão à anos em banho Maria na diversidade dos saberes e os dogmas, que mais se parecem com os enlatados, intragáveis, mas aparentemente belos.
  Vai a fundo na reflexão sobre sua existência. Mas acha um saco precisar de um motivo pra viver. Para além de sua existência, somente quer existir. Descobre com isso, indo a outro extremo que tem intensa repulsa pela obrigação da vida e a sua exaltação. Se precisa de um propósito no mundo, tá decidida que será defensora dos suicidas. Como boa feticheira, cria logo o slogan: "Pelo direito de liberdade à morte". Se espanta, ao perceber como ironiza o intocável e não se sente mal. Descobre o prazer.
  Sente um momento feliz, a vontade de incendiar  igrejas passa, pois ao se descobrir, entende que a dúvida tem mais potencial de iluminação que o fogo. Vai agora, ser alheia, vivendo. Desprezando fins, se detendo a alimentar uma constante incerteza.
Fins são determinantes, e ela, por natureza, uma cristã sem céu.


Maria Carolina Abreu, 21 de janeiro de 2014.



2 comentários:

  1. "(...) a dúvida tem mais potencial de iluminação que o fogo."
    Essa frase tinha que ser sua, tem o seu jeitinho.
    Uma delícia de conto!

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  2. Não é muito difícil encontrar os meus dedinhos pelo texto, não é mesmo? Fico feliz que tenha gostado, Bia. Beijos

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