O primeiro conto tem a sorte das sutilezas...Como escrevi na introdução, minha escrita não ultrapassa as reflexões cotianas. A ideia deste conto surgiu quando eu estava no Museu de Artes Modernas (MAM) e de repente me apareceu um sábio simpático senhor...
O ambulante que lia a menina
De frente para os barcos, a menina redescobria seu prazer em estar sozinha. Sentia a brisa em seu rosto, e observava tudo. Por mais avoada que fosse, suas percepções eram dignas dos bons drogados. Em seu colo, uma delicadeza, uma caixinha, que dentro continha um pequeno livreto de cartas de amor. Os seus olhos diminuíam, como se pudessem rir, função que geralmente é dada a boca. Ela gostaria de ficar em pé, e compartilhar todas aquelas coisas estranhas a si para todos e qualquer um que passasse. Mas a tola, adoraria fazer isso, de uma forma invisível, por isso não o fazia. Faz tempo, alimenta um desejo secreto de voar. Mas de voar em escondido, que assim, é possível que ninguém repare.
O que mais a chama atenção é o desejo de queda. E que Deus me livre, é queda sem morte mesmo, só queda. Ela acha engraçado, as pessoas que se seguram nas coisas quando passam perto de sacadas ou aquelas que nem passam. Então ri e fica encucada, questionando-se se aquele desejo, talvez seja o de todas as pessoas também, a contradição entre o medo de cair e a vontade de dissegurar. Mas voltemos a sua cabecinha de vento e os vários livros no qual ela lia e se perdia e sorria e se esquecia. Inquieta, deitava, sentava e por vezes, se consertava.
Ao seu lado um ambulante curiosava-lhe. A olhava de um longe meio perto. Sua presença no local deserto, parecia sem um tanto de sentido. Mas ele jura de pé junto que está lá aos sábados. Com cara de sedentário, não era possível distinguir se o senhor era pai de família ou um solitário qualquer. A única certeza que pairava naquele ar, parcialmente limpo, era que todo aquele silencio incomodava. E muito. Ele queria conversar, assim como todo bom sujeito e a menina mesmo se perdendo em linhas, com um rabo de olho atento e aguçado, sabia disso. E por isso, como de costume tentava sempre transformar a agressividade da voz em aprendizado.
A menina estava levemente bela. Isso mesmo, ela não era bela. Definitivamente, sua beleza é estado de espirito, ocorre algumas raras vezes e pode acabar em segundos, basta estar em um local com muitos espelhos. Porém aquele ser estanho, aquela pessoa exotérica, como seria chamada mais tarde, devia trazer algo de instigador, pois sempre havia alguém rondando por perto, pronto pra puxar assunto.
Então o ambulante se aproxima: "O tempo tava feio, por isso vim pra cá, mas tá limpando. Já que não vai chover posso voltar pra jogar bola". A imprevisibilidade da frase, fez a menina levantar a cabeça e só mais uma vez confirmar a barriga redonda e os cabelos brancos daquele homem. Então o moço continuou:-Você gosta de ler? A garota, de forma até que doce, reponde que sim, ainda presa ao livro. Porém o silêncio também lhe causa angustia, então devolve a mesma pergunta. E ele reponde: -Eu também gosto muito. Gosto dessas lojas de livros velhos e mais ainda, desses ambulantes que espalham um monte de livros pelo chão. Li sobre muita gente, mas o personagem que eu mais gosto é o Gandhi. Li também sobre Hitler, ele era um cara inteligente, mas usava sua inteligencia pro mal e o Gandhi pro bem. De qualquer forma, acho que o primeiro imperador da China foi bem pior que Hitler, fora o César também. Fez uma pausa, e deu uma risada baixa, como se soubesse muitas fofocas a respeito do imperador, e disse num tom de voz médio: - Mas isso deve ser mentira. Voltou então a concluir o raciocínio: -Hoje em dia nós nem temos tanta gente ruim assim, ou melhor, ainda temos muito, mas comparado a antes...
A menina não tinha ideia de metade das coisas que ele falava, em partes porque tem um deficit brutal em relação a história. Se perde tanto, se enrola tanto, se envolve tanto com o que não faz sentido pra ninguém, que até hoje não sabe quem foi o primeiro presidente do Brasil. Não importa, ela não queria histórias verídicas, queria mesmo, era a diversão do teatro que se formava a sua frente, mesmo desconfiando do romantismo de cada palavra.
O dono das jujubas, gostava mais era de contar as passagens do pacifista, essas que são ricas, mas que tem um leve odor de auto ajuda. Falou uma que fez os olhos da menina ficarem atentos. A passagem do açúcar. Começa a contar:-" A mãe chega e pede um conselho ao sábio. Gostaria de saber como fazia para o filho parar de comer açúcar e o mestre a pediu para que voltasse em dez dias..." Nessa hora, ele, que não era mais senhor, nem comerciante, nem jogador de futebol...ele que havia agora se transformado em um grande contador de história, fazia uma pausa proposital dando tempo para que as cabeças pudessem imaginar e sonhar com o fim, que ele mesmo contaria. Terminou a história.
O ator que se satisfazia, com uma só interlocutora, criava as mais diversas histórias, recriava a história de vida de todos personagens, e quando percebia que ela discordava, com aquela cara feia inescondível, como bom contador, ele remediava. Por vezes, por educação, dava meia volta e dizia que não queria incomodar a moça na leitura, mas antes que a deixasse abaixar a cabeça por completo, ele vinha com mais uma de suas fábulas. Parecia que os dois tinham um pacto, sabiam que não se incomodavam e que havia um limite ali. Haveria uma hora que ela ia de vez abaixar a cabeça e ele respeitaria.
E assim o fez, o silêncio já não era grande incomodo pra nem um, pra nem outro. Por fim, ele deu uma olhada no livro que ela lia, queria saber se estava pelo menos na metade pra saber se ela não lhe contava a história. Ela achava graça do bobo não perceber que o dom da contação era pra poucos. Ele virou as costas desejou boa leitura e disse que traria um livro no próximo sábado, só por dúvida mesmo. Ela desejou bom futebol e disse que voltava para contar a história, e sem nenhuma dúvida, esse era mesmo o seu desejo. Mas ela sabe que nunca volta, pois tá sempre se perdendo por aí.
Isso a deixava angustiada e sabe-se lá de que forma, aquela pequena criatura expressava esse sentimento, com o corpo, com o silêncio ou talvez com os dois. Não era algo visível nem pra ela mesma, mas no entanto, acarretou uma ultima resposta inesperada: -Mas a gente se encontra por acaso, não se preocupa não, porque tudo que é imposição, é ruim né?
Nessa hora a menina já sorria com o corpo inteiro e por isso se apaixonava pela vida e por isso, somente por isso, nesse momento estava bela.
Maria Carolina Abreu

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