Acabo de assistir "O homem das multidões" e sua doçura e delicadeza contraditoriamente massacram qualquer tentativa de linearidade, previsibilidade e aceleração do tempo e da vida. Escrevo isso, porque além de ter saído alucinada do cinema, acredito cada vez mais que a profundidade se encontra no que nos é simples, nos silêncios, nos detalhes das luzes, na imperceptível solidão cotidiana.
Este conto que resgato para dividir com vocês, foi o meu segundo (se minha memória for séria comigo) e tem um ar assim, como no filme, bem simples, quase tolo, de uma tolice tão extrema que ao relê-lo, deu nó nos meus devaneios. Boa leitura, boas reflexões!!!
Pés para que te quero
Calor de muitos graus, o menino caminha turvo em uma direção. Não gosta de chegadas. Mas nesse caso, está apenas indo para o ponto. Tem pressa de chegar à rodoviária. Acende um cigarro, enquanto olha as ondas que se formam pelo calor. Ele acha graça ver ondas, sem sequer ter tomado um copo de cachaça para começar o dia. Bochechas rosadas, suor escorrendo e uma leve dor no ombro causada pela mochila pesada.
Ao seu lado, uma mulher, negra, gordinha, baixinha, duas sacolas nas mãos, cada mão segurando a mão de uma criança. As crianças estão descalças. Sapateiam, choramingam. A mãe, com um leve grito, diz para os dois pararem de reclamar, pois tem sapatos em casa, deveriam ter saído com eles. É difícil entender que previsibilidade e planejamento existem apenas em cabeças moldadamente adultas.
As crianças correm até o outro lado da calçada e sentem um grande alívio pela sombra, que ironicamente em outra ocasião, passaria imperceptível para elas. Talvez, o bom, varie com as circunstâncias. As crianças sabem e vivem isso de uma forma inteligente.
Nesse momento, em questão de segundos o jovem projeta um futuro distante, prevê o péssimo pai que seria. Se fosse com ele, teria colocado cada uma em um ombro. A cena serve para ele se auto enxergar, pois a única coisa que passava em sua cabeça, eram seus pés de pele fina.
Típico jovem, classe média, pés delicados, inconsequente, impaciente e com dúvidas de sobra. Quer dar uma educação aos futuros filhos, que idealiza, mas não suporta. O que ele mesmo poderia ser, mas não é. Quer liberdade, sem sair da bolha, sem ter bolha nos pés.
Chegando na calçada, do outro lado da rua, senta na mureta de uma loja hiper granfina. Sorri pro céu, quando sente uma leve brisa e fica ali parado. Na verdade, mais ou menos parado, pois não se livra da angustia do tédio. Olha para aquela loja chique, cheia de decorações que só servem pra suprir necessidades psíquicas-estéticas e sente uma enorme vontade de dar um empurrãozinho naquela porta, sabendo que esse gesto lhe proporcionaria um leve segundo de prazer. Se contem, não quer confusão. Prefere e opta por devanear sobre a função das separações, como vidros e muros, pensa debochadamente só para ter o prazer de rir, e conclui que certamente, deve ser para poeira não passar.
Passa quarenta minutos e o ônibus não chega, ainda vai demorar. Terra de coronel, a cidade funciona como quer. Tem acordos, igrejas e o ar cheira a conservadorismo. Não suportam diferença, nem heresia e a cima de tudo, nada de mulambagem.
Dentro da loja, com ar condicionado, uma Senhora. Tem nariz fino e arrebitado, causando sérias dúvidas se ela de fato, consegue respirar. Para reafirmar a indagação, acompanhando seu membro olfativo, tem uma saia que parece esmagar sua cintura, agregando mais ainda a sensação de sufoco. Em cima, blusa branca, decote para o charme, botões que não cumprem função alguma. E o pedacinho mais importante do corpo, está revestido de absurdo, o pé.
O pé, que faz o menino repensar suas fragilidades, que faz com que as crianças brinquem de desafiar a si mesmas, que faz com que a mãe, ao dar três toques no chão, se faça entender.
Esse mesmo pé, perde sentido na chefa. Ela calça sapato preto pontudo e de agulha, que não serve para as calçadas esburacadas do local que vive. Mas, só pela forma de seu vestir, nexo não é lá o seu forte.
De repente, ela se levanta com uma cara de fúria prepotente, carregando consigo um andar cômico, pelo longo corredor. Dirigindo-se de maneira feroz ao desleixado, como quem tem como ofício pela manhã, jogar sal nos caramujos que embaçam a vitrine, abre a porta e diz: Garoto, você não pode ficar aí não.
O garoto sabe, que o que ele escuta, é impossível que seja ilusão de ótica proveniente do calor. Responde: - Ah então faz o seguinte, chama a policia.
A mulher dá meia volta, preserva os bons modos e sem perder a pomposidade se dirige ao telefone.
...É, a filha da puta foi ligar mesmo.
O menino fica um pouco tremulo, mas perder seu orgulho e sua rebeldia é algo inadmissível. Permanece ico e sentado.
A policia se aproxima. O menino segura o riso, aquela luzinha que roda em cima da viatura, sem barulho, é claro, o faz rir e lembrar-se de sua infância. Pra ele, o carro se assemelha aos seus brinquedos, infantis e irreais. Se controla. Aguarda o policial abrir a porta e se retirar do veiculo.
Menino: - Bom dia.
Policial:- O que tá acontecendo aqui?
Menino: - Sabe seu policial. Pedi para aquela fina Senhorita, que se encontra ao fundo deste estabelecimento para ligar para vocês. Estou há quase uma hora neste sol, sem que um mísero ônibus passe. Tenho indisposição, fraqueza, fadiga, a cabeça dói, o estomago tá embrulhado. Tenho enjoo e tonteira, suo quente. Pode ver? Mas se precisar suo frio também. Vai ver é desidratação.
Observe só, como meu caso é grave, vossa autoridade. Fora o grande risco de insolação, possibilidades de desmaio a qualquer momento, de quebra, ainda padeço do pior dos males: profundo cansaço.
E o Senhor, meu amigo, não acreditará na maior, aquela distinta dama, me nega um pedacinho deste granito. Olha o estrago que a tal me causara. Quero dar queixa. Isso mesmo. Tenho muitas. Anota aí. Queixa um, por negligencia; dois, agressão física indireta; e três: pela tremenda falta de compostura. Onde já se viu tal comportamento? Fora sua apatia ou talvez mais grave, compactuação com um transporte público que passa em frente sua propriedade e demora esse tempo todo, fazendo com que as pessoas precisem ficar escoradas em sua intocável construção. É, seu guarda, você terá muito trabalho pela frente.
Neste momento, a dona da loja, já havia saído de lá, tendo podido apenas apreciar o finzinho do discurso do garoto. Aparentava estar meio imóvel, meio atordoada, parte, por sua grande dificuldade de assimilação. O policial, por sua vez, levantava as sobrancelhas e franzia a testa, seus olhos não pareciam muito felizes.
Ele começava a mexer seus braços e inclinar o corpo para o lado do adolescente. Enquanto a dona, prestes a perder toda sua classe, moralidade e reputação, separava os lábios, começava abrir a boca e movia as mãos, como se quisesse esmagar algo, ou talvez o pescoço de alguém. Os dois pareciam começar a fazer movimentos bruscos de insatisfação.
O menino se abaixa, e corre em direção ao ônibus que acabara de chegar.
Maria Carolina Abreu, 4 de Janeiro de 2014

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